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auto circunstanciado, ônus da prova, Constituição, contraditório diferido, degravação, estado de defesa, estado de sítio, fase pré-processual, fundamentação, garantia fundamental, instrução processual penal, investigação criminal, inviolabilidade do sigilo, Lei 9.296, princípio do contraditório, privacidade, prova, reclusão, reserva de jurisdição, sigilo das comunicações telefônicas
O sigilo das comunicações como garantia fundamental
A Constituição do Brasil prevê, no artigo 5.º, inciso XII, como garantia fundamental de todo cidadão, o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas. A norma constitucional estabelece que, em princípio, esse sigilo é inviolável e que o sigilo das comunicações telefônicas somente pode ser quebrado por ordem judicial, nos termos da lei, para fins de investigação criminal ou de instrução (produção de provas) em ação penal. Desse modo, a regra é a inviolabilidade do sigilo das comunicações, cuja quebra só pode ocorrer de forma excepcional e por autorização de um juiz competente.
Além dessa garantia, válida em tempos de normalidade institucional, a Constituição admite a possibilidade de restrição ao sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas no caso de o Presidente da República decretar estado de defesa ou estado de sítio (artigo 136, § 1.º, inciso I, alínea c, e artigo 139, inciso III) [Obs.: O símbolo “§” lê-se como “parágrafo”.]. O estado de defesa e o estado de sítio são medidas excepcionais de proteção da sociedade, do Estado e do regime constitucional, admitidas em circunstâncias de emergência. Nelas, certas garantias constitucionais dos cidadãos podem ser restringidas, para fazer face à gravidade da situação. O sigilo das comunicações é uma das garantias que podem sofrer restrições nesses casos.
Lei aplicável à interceptação
A lei que regulamenta a norma constitucional é a Lei 9.296, de 24 de julho de 1996. É ela que disciplina a forma e as condições para que comunicações telefônicas sejam interceptadas de maneira válida. As principais características dessa forma de investigação são explicadas a seguir.
Quando cabe a interceptação
A interceptação de comunicações telefônicas só é possível em investigação criminal ou durante a instrução processual penal. Quando a lei menciona a investigação criminal, refere-se à etapa da investigação que ocorre antes de iniciada a ação penal (a chamada fase pré-processual). A ação penal começa, quase sempre, com uma petição do Ministério Público denominada denúncia, que precisa ser recebida pelo juiz ou tribunal competente (é o recebimento da denúncia), para que o processo criminal se forme. A investigação criminal é feita, na maior parte das vezes, em inquéritos criminais, conduzidos pela polícia e supervisionados pelo Ministério Público. Pode ocorrer também em procedimentos investigatórios do Ministério Público.
Instrução processual penal é a fase do processo criminal em que as partes (acusação e defesa) têm a oportunidade de requerer a produção de provas para demonstrar suas teses – lembrando que é sempre do Ministério Público o ônus da prova de que o crime ocorreu (o que se chama de materialidade do crime) e o de que o réu é o responsável (ou um dos responsáveis) por ele (a autoria do crime).
Reserva de jurisdição
Como se considera que a interceptação de comunicações telefônicas é medida que invade de forma drástica a privacidade dos cidadãos, apenas um juiz (ou tribunal) competente para supervisionar a investigação criminal pode autorizá‑la. O Ministério Público, a polícia e os demais órgãos públicos não podem interceptar telefonemas de cidadãos sem autorização judicial. Essa exclusividade do Poder Judiciário para autorizar tais interceptações é o que se chama de reserva de jurisdição (isto é, a matéria é reservada, restrita, à permissão do Poder Judiciário).
Requisitos
Além disso, a Lei 9.296 estabelece certas condições para que a interceptação de comunicações telefônicas seja autorizada pelo juiz:
a) deve haver indícios razoáveis da autoria ou da participação do investigado em crime;
b) a interceptação deve ser necessária à produção da prova;
c) o fato investigado deve ser crime punido com pena de reclusão (que são as penas privativas de liberdade mais graves; existem contravenções penais e crimes punidos com penas menos severas, como a prisão simples e a detenção: para estes, não se permite a interceptação de telefonemas).
A lei prevê que a interceptação seja sugerida pela polícia ou requerida pelo Ministério Público. No primeiro caso, o Ministério Público deve necessariamente ter conhecimento da proposta, uma vez que é o titular da ação penal e, se entender desnecessária ou ilegal uma proposta de interceptação feita pela polícia, não há sentido em o juiz decretar a medida, pois o MP não usará as provas surgidas da interceptação.
Toda decisão que autorizar a interceptação de comunicações telefônicas deve ter fundamentação adequada. Essa exigência, na verdade, vale para toda decisão judicial, de acordo com a Constituição (artigo 93, inciso IX).
O prazo da interceptação é de 15 dias (artigo 5.º da Lei 9.296). Se houver necessidade de a investigação prosseguir com a interceptação, esse prazo pode ser estendido, mas, a cada prorrogação, a polícia e o Ministério Público, conforme o caso, devem justificá-la ao juiz, e este deve sempre proferir decisão fundamentando a prorrogação.
A interceptação deve ser gravada, sob pena de as informações colhidas a partir dela poderem não ser aceitas pelo Poder Judiciário. Essas gravações devem ser inseridas nos autos do processo de interceptação, para que, futuramente, a defesa também tenha acesso a elas e as use no interesse do acusado, conforme caiba. A lei exige também que o órgão responsável pela interceptação (a polícia ou o MP) faça relatório dos dados relevantes colhidos durante ela. A lei chama esse relatório de auto circunstanciado. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que não é indispensável fazer a degravação completa da interceptação, ou seja, transcrever todos os diálogos captados na interceptação (habeas corpus 2.424/RJ).
Sigilo
Pela própria natureza da interceptação de comunicações telefônicas, trata-se de medida que deve ser realizada de forma sigilosa pela polícia e pelo Ministério Público, pois, obviamente, se o investigado tiver ciência de que suas comunicações são interceptadas, não dará informações úteis à investigação. Por isso, em geral, o investigado apenas toma conhecimento da interceptação se ela vier a utilizada na ação penal que o MP propuser. Nesses casos, o princípio do contraditório (que exige a participação de ambas as partes do processo em seus atos) é adiado para depois que a ação penal é proposta. Isso é o que se denomina de contraditório diferido (adiado).
Ao término da interceptação, todas as conversas desnecessárias para o processo devem ser destruídas, a fim de preservar ao máximo a privacidade das pessoas envolvidas.
Gravação por interlocutor
Um aspecto relativo à interceptação, mas que interessa também a outras formas de gravação de conversas, diz respeito à possibilidade de um dos participantes do diálogo (um dos interlocutores) gravá-lo para que isso seja usado como prova. O Supremo Tribunal Federal já decidiu diversas vezes que a gravação por interlocutor de conversa é válida e pode ser usada como prova, mesmo que feita de maneira clandestina, ou seja, sem conhecimento do outro interlocutor. Isso vale tanto para a gravação de conversa telefônica quanto para a gravação ambiental, isto é, de conversas em local fechado ou aberto. O julgamento do STF foi nesse sentido, por exemplo, no habeas corpus 74.678/SP e no habeas corpus 91.613/MG. Não é aceitável, porém, a gravação da conversa por terceiro (pessoa não participante da conversa), como julgou o STF no habeas corpus 80.949/RJ.
Gravações passadas
A interceptação de diálogos telefônicos é sempre feita para o futuro, pois depende de autorização judicial para que possa começar. A única exceção é a gravação efetuada pelo próprio interlocutor, que não depende de autorização de juiz.
Não é legalmente possível que a polícia, o Ministério Público ou qualquer outro órgão público (ou entidade privada) inicie a interceptação de comunicações telefônicas para só depois pedir autorização judicial. Se isso acontecer, as gravações de conversas anteriores à autorização judicial serão juridicamente nulas e deverão levar à responsabilização criminal de seus autores.
Também não é tecnicamente possível, mesmo com autorização judicial, obter gravação de conversas telefônicas ocorridas no passado. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as empresas de telefonia não gravam conversas dos usuários, a não ser que tenha existido ordem judicial anterior para essa finalidade, em uma investigação criminal. Sem isso, não existe nenhuma gravação que possa ser recuperada. Se existir, será ilegal, conforme se explicou acima, e deverá gerar responsabilidade de seus autores.
Interceptação ilegal
Por fim, a lei define que qualquer interceptação realizada sem autorização judicial ou para fins ilegais constitui crime, punido com pena de reclusão de dois a quatro anos, mais multa.
Parabéns pelo post. Sobre o tema, deparei-me com um caso concreto interessante. Em investigação criminal cujos suspeitos são agentes da Polícia Civil, poderá, excepcionalmente, as interceptações das comunicações serem realizadas por policiais militares?.
Outra problemática: se o Ministério Público Federal conduzir uma investigação criminal e requerer a interceptação telefônica, há estrutura de pessoal qualificado para realizar as escutas? A ASSPA/PGR tem condições estruturais atualmente para realizar essas escutas? Importante, nesse momento após a rejeição da PEC 37, fortalecer a estrutura investigativa do MP.
Abraços.
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Olá, Marcos, obrigado pelo comentário.
A 2.ª Turma do STF decidiu, no habeas corpus 96.986/MG, que a Polícia Militar pode, em casos excepcionais, executar a interceptação telefônica, desde que com autorização judicial, naturalmente, e sob supervisão do Ministério Público (veja notícia no Informativo do STF 666: http://migre.me/fBFwu ).
O MPF não desenvolveu ainda estruturas específicas dedicadas à realização de interceptação telefônica, mas acho que deveria fazê-lo no futuro, sem prejuízo de que, como regra geral, a interceptação seja executada pela polícia criminal.
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onde lê-se: “poderá”, leia-se: “poderão”.
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Muito bom Doutor. Sempre acompanho seu blog. O parabenizo pela forma didática e esclarecedora que expõe temas tão relevantes.
Resta-me uma dúvida: a produção do auto circunstanciado a ser enviado ao MP, no caso de investigação preliminar na policia para demonstração da probabilidade do fumus commissi delicti, é atribuição do policial que ouviu, acompanhou, transcreveu e analisou os áudios interceptados durante a instrução? Nesse caso, esse policial, que produziu o auto circunstanciado, para efeitos da lei 9.296 é considerado a autoridade policial, mesmo não sendo ocupante do cargo de delegado de polícia federal?
Obrigado.
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Fernando, o art. 6.º, § 2.º, da Lei 9.296 diz que o auto circunstanciado deve ser remetido ao juiz pela “autoridade policial”. Tradicionalmente, esse conceito é associado à figura do delegado de polícia. Além disso, como a presidência do inquérito cabe ao delegado, formalmente é ele que se relaciona com o Ministério Público e com o juiz de forma direta. Portanto, não me parece correto que o agente faça a remessa, embora, na prática que conheço, da Polícia Federal, a substância desses autos se baseie no trabalho dos agentes.
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Dr Wellington obrigado. Compreendi que a responsabilidade de “encaminhar” o auto circunstanciado é realmente do delegado, pois a praxis administrativa entende o mesmo como unica autoridade policial na polícia, no entanto a produção (ouvir, degravar, análise de vínculo, organograma etc) do mesmo, contendo resumo das operações, atividade que é comumente chamada de “Análise”, é feita pelos Agentes Federais. A lei não é clara em relação de quem seja a responsabilidade de produção do auto.
Espero que a próxima reforma processual possa contemplar e reconhecer o relevante trabalho desses profissionais.
Abraço.
Mais um vez parabéns pelo trabalho.
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Nesse ponto, penso como você, Fernando, e agradeço mais uma vez.
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Dr fui julgado absolvido em um processo c intercep telef . a defensora publica alegou que a interceptação foi autorizada por juiz natural . que não era Juiz do TJMMG E SIM DO TJMG ALEGOU QUE A PROVA ERA ILEGAL POR ISSO. o q o Sr me ddiz a respeito de juiz natural autorizar intercep telef de Polic Militares ?
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José, a expressão “juiz natural” significa o juiz que é legalmente competente para julgar um processo. Sem conhecer os detalhes do caso, não posso ajudar, e, de qualquer forma, não poderia mesmo, pois sou proibido pela lei de tratar de situações individuais.
Sobre o assunto, tenho um texto no blog: Regra de competência e princípio do juiz natural: quem julgará seu processo. Talvez consiga informações de seu interesse nele.
Lamento não poder ajudar mais.
Se usar o Twitter, convido você a acompanhar-me lá, onde também procuro discutir temas interessantes de Direito e outras matérias.
Twitter: @WSarai
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otimo
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A interceptação telefônica e a interceptação de internet via cabo no caso estão sobe a mesma tutela constitucional e legal, o fato investigado deve ser crime punido com pena de reclusão para se devassar a internet!?
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Estou aguardando uma resposta do autor, sobre interceptação de internet a cabo, uma vez que essa estão diretamente conectadas ao telefone do usuário. Qual a interpretação da lei nesse caso é a mesma da interceptação telefônica !?
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A pergunta é: Como a internet é via cabo telefônico esse procedimento legal vale pra interceptações de internet !?
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dr bom dia! gostaria de saber se a testemunha num processo pode ter o sigilo telefonico quebrado
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Tudo que foi dito e muito bem dito e corretamente dito dentro das normas legais, com uma explicação impecável que qualquer leigo é capaz de entender , mas que poucos tem a capacidade de explicar tão bem como o autor do artigo, na verdade, no mundo real vira lenda.
Eu tenho documentos, apresentados por autor de “ação cível” em que fui réu, sob acusação de calunia, o autor ao perceber que não tinha as provas suficientes pra iniciar a ação proposta, em que alegava calunia em um site de propriedade do réu, com a recusa do juiz em prosseguir a ação por falta de objeto, pasmem: O autor da ação informa ao juiz que tem e-mail do réu pra uma terceira pessoa que pelo autor havia sido interceptado (sem da devida autorização judicial) que poderia substituir a prova inicial que esse não conseguiu faze-la. O juiz recusou e ainda disse que só faria uso dessas provas se o réu aceitasse prosseguir a ação com as mesmas.
Mais tarde esse processo que havia sido rejeitado de plano, fora rejeitado em agravo por unanimidade contra o autor da ação, mesmo assim ele continuou o processo e condenou o réu.
Lamentável ter que mostrar aqui a muitos jovens que procuram se inteirar das matérias jurídicas com esse ilustre e competente parquet prof. Wellington Saraiva qual tenho a honra de poder acompanhar nas redes sociais, e ser leitor assíduo e prazeroso de seus artigos, mas o outro lado da moeda, como funciona muitas vezes, não resisto sem dar minha opinião, de que viveu na pele esses desmandos sem chance de defesa.
Parabéns pelo artigo.
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bom dia nao obtive resposta sobre a tstemunha inquirida num inquerito pode ter a quebra do sigilo telefonico
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oi. fiz uma denuncia anonimar ao conselho tutelar, so que a mae disse que vai consegui descobri quem fez a denuncia pela a quebra de sigilio telefonico. quero saber se tem como ela descobri ela disse que dar ate p ouvi a pessoa falando e o numero do telefoni e da onde veio….
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