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Aspectos iniciais. A criança e o adolescente na Constituição do Brasil

Parece evidente que cuidar de crianças e adolescentes e educá-los de forma adequada é fundamental para o futuro (e até para o presente) de qualquer sociedade. Crianças e adolescentes passam por época especial da vida, em que se forma sua personalidade e se desenvolvem (ou não) as habilidades (e alguns problemas) que carregarão por toda a existência. Precisam receber orientação e educação (no sentido mais amplo) e formar sua noção de valores éticos, como respeito e autoridade.

Atenta a isso, a Constituição do Brasil de 1988 deu especial atenção à criança e ao adolescente em vários de seus dispositivos:

a) no artigo 203, inciso II, estabeleceu que o Estado deve prestar assistência social às crianças e adolescentes carentes;

b) no art. 208, inc. IV, o dever do Estado de oferecer educação infantil, em creches e pré-escolas, às crianças com até 5 anos de idade;

c) no art. 227, caput (a parte inicial do artigo), definiu como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão;

d) no art. 227, § 4.º [o símbolo “§” lê-se como “parágrafo”], determinou que a lei puna severamente abuso, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes;

e) no art. 227, § 6.º, estabeleceu que filhos, surgidos ou não durante casamento, ou por adoção, terão mesmos direitos e qualificações e que são proibidas designações discriminatórias relativas à filiação;

f) no art. 228, definiu que menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ou seja, não têm a mesma responsabilidade criminal dos maiores.

A Constituição brasileira quis, com esse conjunto de normas, criar um sistema de proteção integral à criança e ao adolescente.

Dispositivos da Constituição são os mais importantes de todas as leis do Brasil, uma vez que as normas constitucionais são as mais relevantes de todas. Infelizmente, todos sabem que elas não são cumpridas adequadamente pelo Estado e pela sociedade. Se fossem, muito provavelmente a maior parte dos problemas relativos a crianças e adolescentes – sobretudo os da violência praticada por eles e contra eles – seria evitada.

De toda forma, tais normas precisam sempre ser lembradas antes de se pensar em tornar mais rigorosas leis que estabeleçam punição de adolescentes por atos violentos. Faz muito mais sentido exigir dos governantes que cumpram as normas de proteção, educação e assistência de crianças e adolescentes, a fim de prevenir a violência, em lugar de imaginar que aumentar a repressão deles diminuirá seus atos de violência.

A Lei 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)

Em cumprimento às normas da Constituição, foi editada a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é a principal lei relativa à matéria e procura estabelecer o caminho para concretizar as disposições constitucionais aplicáveis às crianças e adolescentes.

O ECA define legalmente quais pessoas são consideradas crianças e adolescentes, no art. 2.º:

a) criança é a pessoa até 12 anos de idade incompletos;

b) adolescente é a pessoa com idade entre 12 e 18 anos.

Embora o ECA contenha normas para aplicação de medidas a crianças e adolescentes, a finalidade da lei não é a punição, mas o desenvolvimento adequado deles. Mesmo assim, não é correto afirmar que adolescentes autores de atos violentos fiquem impunes, como se verá.

Há quem critique a fixação de idades específicas para a definição de quem é criança e adolescente. Afirma-se que o desenvolvimento mental e psicológico não ocorre de uma hora para outra, mas em um processo longo (o qual, na verdade, nem mesmo acaba aos 18 anos, mas se prolonga, em alguns aspectos, até perto dos 30 anos). De fato, um adolescente não adquire maturidade completa no dia em que completar 18 anos nem é correto dizer que, aos 17, seja incapaz de fazer julgamentos e sofrer as consequências de seus atos.

A definição dessas idades na lei decorre de uma opção necessária do legislador, pois, qualquer que fosse a idade, poderia haver as mesmas críticas e é preciso que a lei estabeleça faixas etárias sujeitas a diferentes tratamentos e consequências jurídicas. Uma opção a pensar para o futuro seria prever a possibilidade de exames individuais de caráter multidisciplinar (feitos por psicólogos, assistentes sociais, médicos etc.) para definir se determinada criança ou adolescente poderia receber tratamento distinto do previsto para sua idade.

Ato infracional e suas consequências

O Estatuto da Criança e do Adolescente cria o conceito legal de ato infracional, que é o ato de criança ou adolescente definido nas leis como crime ou contravenção penal, para as pessoas com mais de 18 anos. O Código Penal (CP) prevê, no artigo 27, que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis e ficam sujeitos às normas de leis especiais. No mesmo sentido dispõe o artigo 104 do ECA.

Para avaliar a aplicação do ECA ou do Código Penal a determinado ato, considera-se a idade do adolescente no momento em que o ato foi praticado (artigo 104, parágrafo único, do ECA).

Ser penalmente inimputável significa que o indivíduo não está sujeito às punições previstas nas leis criminais, mas não quer dizer que seus atos sejam imunes a consequências jurídicas. Como diz o próprio art. 27 do CP, aplicam-se aos menores de 18 anos regras especiais, que são as do ECA.

Desse modo, juridicamente não é possível afirmar que criança ou adolescente cometam crime nem contravenção penal. Sempre que uma conduta de criança ou adolescente corresponder a crime ou contravenção, será considerado como ato infracional. O ato será o mesmo, mas o tratamento jurídico e as consequências dele são diferentes.

Para um ato ser considerado como crime ou contravenção penal, é indispensável haver uma lei federal que antes o defina como tal. Essa é uma garantia fundamental do cidadão, denominada princípio da legalidade penal. Está no art. 5.º, item XXXIX, da Constituição, que determina: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra garantia constitucional fundamental está no item XL do mesmo art. 5.º, que proíbe leis criminais retroativas, a não ser para beneficiar o cidadão (é o princípio da irretroatividade da lei penal). Os dois princípios estão entre os direitos fundamentais dos cidadãos.

Consequências do ato infracional

No caso de criança (pessoa com até 12 anos incompletos), a mentalidade da Lei 8.069 é a de aplicar medidas com caráter sobretudo de proteção e de orientação, para o desenvolvimento dela, considerando sua formação mental e psíquica incompleta. Por esse motivo, segundo o artigo 105 da lei, no caso de ato infracional praticado por criança, as consequências aplicáveis são as previstas no artigo 101, que são as seguintes:

I) encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II) orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III) matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI) inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

VII) acolhimento institucional;

VIII) inclusão em programa de acolhimento familiar;

IX) colocação em família substituta.

Como se afirmou, a finalidade do ECA é, sobretudo, a de preservar o desenvolvimento da criança e de seus potenciais. Considerando a baixa idade e o desenvolvimento incompleto dessas pessoas até os 12 anos, a lei optou por não lhes aplicar punições semelhantes às dos adultos nem às dos adolescentes, mas medidas que possam fazê-las retornar ao bom caminho.

Se muitas vezes se divulgam casos de crianças em instituições públicas que não apresentam o comportamento esperado pela maior parte das pessoas, isso se deve, principalmente, ao baixo interesse dos governantes e à falta de recursos desses estabelecimentos para desenvolver os potenciais positivos das crianças ali acolhidas.

No caso de adolescente que cometa ato infracional, as medidas aplicáveis podem ser mais severas, a depender da gravidade e das circunstâncias do ato, e estão relacionadas no art. 112. A lei classifica-as como medidas socioeducativas, pois, embora tenham algum caráter de punição, a finalidade delas é também a de levar o adolescente a retornar ao caminho correto do crescimento pessoal. Essas medidas são:

I) advertência;

II) obrigação de reparar o dano;

III) prestação de serviços à comunidade;

IV) liberdade assistida;

V) inserção em regime de semiliberdade;

VI) internação em estabelecimento educacional;

VII) qualquer uma das previstas no art. 101, itens I a VI (indicadas acima).

Para a aplicação dessas medidas, o adolescente responde a processo judicial semelhante à ação penal aplicável aos adultos, movida pelo Ministério Público estadual e com garantias processuais (contidas nos artigos 106 a 111 do ECA e na Constituição da República). O processo para aplicação das medidas a adolescente está disciplinado nos arts. 171 a 190 do ECA.

A mais grave das medidas socioeducativas aplicáveis a adolescentes é a internação, que não tem prazo predefinido na lei, pois se sujeita a reavaliação a cada seis meses, no máximo (art. 121, § 2.º, do ECA). A duração máxima da internação é de 3 anos (art. 121, § 3.º, do ECA).

Se, porém, o adolescente apresentar psicopatia e periculosidade, o juiz pode estender esse prazo enquanto for necessário.

Essas medidas devem ser aplicadas pelo juiz competente, geralmente em uma vara da infância e da adolescência (ou denominação semelhante), existente nas cidades maiores. Se não houver vara especializada, o processo tramitará em vara comum, definida de acordo com as regras baixadas pelo Tribunal de Justiça em cada Estado.

Consequências cíveis de atos de criança e adolescente

Além das medidas previstas no ECA, qualquer ato ilícito de criança e adolescente pode gerar consequências jurídicas para indenização de danos que tenham causado.

O art. 116 do ECA prevê o dever de reparar o dano causado por ato infracional. Mesmo que não se trate de ato infracional (que deve corresponder a um crime ou contravenção penal, como dito), qualquer pessoa que fira direito de alguém e lhe cause dano deve indenizá-lo, de acordo com a regra geral dos arts. 186 e 927 do Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

O dever de pagar indenização por dano é das próprias crianças e adolescentes, mas os pais respondem por ele, se elas não puderem realizar o pagamento (arts. 928 e 932, incisos I e II, do Código Civil).

Dessa forma, mesmo que a criança ou adolescente não responda a processo por ato infracional, a vítima do dano pode ajuizar ação para obter indenização. Esse processo geralmente tramita em uma das varas cíveis do local onde o dano ocorreu.

Seria bom atribuir responsabilidade penal a crianças e adolescentes?

Muitas pessoas consideram excessivamente leves as medidas socioeducativas do ECA e propõem a redução da idade mínima para a imputabilidade penal. Muitos falam em reduzi-la para 16 anos, ou até menos. Essa discussão é complexa e poderá ser objeto de outro texto, para que este não fique muito longo.

Minha opinião é de que não convém para a sociedade brasileira essa redução. Não discuto que, aos 16 ou 17 anos, um adolescente é capaz de entender a maior parte do que é certo ou errado. Essa não é a questão.

Em primeiro lugar, não parece justo que o poder público (principalmente os Estados, que têm a maior parte da competência jurídica para aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente) descumpra os deveres impostos pela lei, negue a crianças e adolescentes os instrumentos previstos no ECA e destine recursos para mantê-las em prisões. É muito mais racional destinar esses recursos para a construção e o aperfeiçoamento de escolas, para preparar crianças e adolescentes, não para prendê-los.

Não faz sentido transferir para o sistema penitenciário adolescentes que cometam atos infracionais graves. O prazo de internação de até 3 anos não é pequeno, se comparado com o prazo de reclusão que adultos cumprem quando praticam crimes graves.

Na prática do Direito Penal no Brasil, somente ficam presos mais de 3 anos réus condenados por crimes muito graves. Até mesmo no caso do homicídio simples, a pena mínima para adultos é de 6 anos (art. 121 do Código Penal). Se um adulto receber essa pena e apresentar bom comportamento, poderá progredir para o regime semiaberto quando cumprir um sexto dela, ou seja, em um ano já poderá sair do regime fechado, de acordo com o art. 112 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 11 de julho de 1984). Dessa forma, para que um adulto fique efetivamente preso 3 anos, se tiver direito a progressão de regime de cumprimento da pena, precisaria ser condenado a 18 anos de reclusão, o que é raro ocorrer.

É pura ilusão acreditar que enviar ao sistema penitenciário milhares de adolescentes será bom para o país. O sistema penitenciário brasileiro tem a quarta maior população de presos do mundo, de acordo com censo do Ministério da Justiça, a qual em 2012 era de 548.003 pessoas (veja o texto Por que pessoas processadas e condenadas não ficam presas no Brasil?). O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), utilizando outro critério, que inclui pessoas em prisão domiciliar, divulgou levantamento com número ainda mais alto, de 711.463 presos. Existe enorme superpopulação carcerária, ou seja, as prisões não comportam todos os presos, e ainda há estimativa de quase 200 mil mandados de prisão sem cumprimento. O sistema não teria como receber essas pessoas, de toda forma.

Todos sabem que muitas prisões brasileiras estão, talvez, entre as piores do mundo. Embora haja exceções, elas, em geral, desrespeitam direitos dos presos e obrigações internacionais do país, não ressocializam, não preparam os presos para o retorno à liberdade, não os capacitam para o trabalho lícito, permitem que crimes continuem a ocorrer dentro e fora delas, até com a coordenação feita por presos, usando telefones celulares e mensageiros. O sistema é tão ruim que nem as taxas exatas de reincidência (isto é, de presos que voltam a cometer crime depois de libertados) são conhecidas. Geralmente se considera que essa taxa seja em torno de 70%. Presos devem ser tratados de forma severa, quando necessário, nos termos da lei, mas, ao mesmo tempo, precisam ser tratados com dignidade. Parece intuitivo que eles tenderão a devolver à sociedade a violência que sofrem nas prisões, da polícia, de agentes penitenciários e de outros presos. Seria muito melhor para a sociedade que fossem tratados com respeito e fossem treinados para o trabalho. A realidade atual do sistema penitenciário alimenta o crime, em vez de combatê-lo.

Por esses motivos, transferir adolescentes para o sistema carcerário pioriaria muito as condições das penitenciárias e certamente geraria ainda mais violência para a sociedade. Em resumo, nem o sistema penitenciário brasileiro teria condições de receber esses adolescentes e, se tivesse, o resultado seria pior para a sociedade, com ainda mais violência do que a situação atual.