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No Brasil e nos países ocidentais em geral, a Constituição nacional é a mais importante norma jurídica entre todas. Como o nome indica, ela constitui o Estado, cria seus órgãos, regulamenta como o poder político é conquistado e exercido, estabelece os direitos fundamentais dos cidadãos e serve como fundamento para todas as demais normas (é o que se chama de fundamento de validade das normas jurídicas).

O conjunto de normas em um Estado é conhecido como ordenamento jurídico ou ordem jurídica. Nenhuma norma jurídica, qualquer que seja sua natureza, pode ser contrária às normas constitucionais, pois a Constituição está acima de todas elas. Quando isso ocorre, há o defeito da inconstitucionalidade, que gera como consequência a nulidade da norma contrária à Constituição, e essa norma não deve produzir nenhum efeito.

O Poder Judiciário tem como função mais importante a de julgar conflitos de interesses entre pessoas. Ao fazer isso, cabe-lhe aplicar as normas jurídicas em vigor, pois a função de criar normas jurídicas é, sobretudo, do Poder Legislativo. Por essas razões, no julgamento de processos judiciais, as primeiras normas que o Judiciário deve levar em conta são as normas constitucionais, já que estas são as normas fundamentais do ordenamento jurídico.

A Constituição do Brasil em vigor, de 1988, com suas dezenas de emendas, registra a palavra “censura”, de forma expressa, em duas normas:

a) ao tratar dos direitos fundamentais dos cidadãos, no artigo 5.º, inciso IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”;

b) no capítulo que trata da comunicação social, em seu artigo 220, § 2.º (o símbolo “§” lê-se como “parágrafo”): “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”

Não bastassem essas duas claríssimas normas proibitivas da censura, outros dispositivos da Constituição brasileira asseguram a liberdade de manifestação do pensamento e da informação:

a) artigo 5.º, inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;

b) art. 5.º, inc. XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”;

c) art. 220, caput (a primeira e principal parte de um artigo): “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”;

d) art. 220, § 1.º: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5.º, IV, V, X, XIII e XIV.”

Os incisos do art. 5.º da Constituição, mencionados no art. 220, § 1.º, tratam da liberdade de manifestação do pensamento (inc. IV, acima transcrito), do direito de resposta (inc. V), da inviolabilidade da vida, da honra e da imagem das pessoas e do direito à indenização (inc. X), da liberdade de profissão (inc. XIII) e do direito de acesso à informação e do sigilo da fonte (inc. XIV, acima transcrito).

Como se vê, a Constituição procurou cercar a liberdade de imprensa, de manifestação do pensamento e de acesso à informação de um conjunto de normas expressas, ao mesmo tempo em que, também de forma explícita, proibiu a censura de qualquer natureza.

Durante muitos anos, vigorou no Brasil a Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967), produzida durante o regime autoritário de 1964-1985. Ela previa a possibilidade de censura do governo a espetáculos e diversões públicas e, durante o estado de sítio, também à imprensa (art. 1.º, § 2.º). Também estabelecia uma série de outras limitações à atividade da imprensa.

Mesmo com a promulgação da Constituição democrática de 1988, a Lei de Imprensa nunca foi expressamente revogada por outra lei. Somente em 30 de abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 130/DF. A ADPF é uma espécie de ação que só o STF pode julgar e que serve para fazer valer determinadas normas particularmente importantes da Constituição. No julgamento da ADPF 130/DF, o STF decidiu que toda a Lei de Imprensa era incompatível com a Constituição de 1988 e que, por isso, não deveria ser aplicada (veja o longo acórdão, isto é, a decisão da ADPF).

Nessa decisão, o STF, por meio do relator da ADPF, o Ministro Ayres Britto, fez diversas considerações relevantes sobre a relação entre a imprensa e a Constituição, como as seguintes:

a) a “Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade”;

b) a Constituição rechaça “qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização”;

c) a “liberdade de pensamento, criação, expressão e informação estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação”;

d) a liberdade de imprensa prevalece sobre a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra, e a ofensa a estas deve gerar responsabilidade do ofensor, mas não cercear (restringir) aquela liberdade;

e) “não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário”;

f) a imprensa é “verdadeira irmã siamesa da democracia”;

g) “o exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado”;

h) “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”;

i) “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”.

O entendimento do STF, adotado nessa ADPF, foi confirmado quando o tribunal julgou a medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.451/DF, em 2 de setembro de 2010.

Apesar disso, ao julgar outro processo, em 10 de dezembro de 2009, a reclamação 9.428/DF, o STF decidiu, por maioria, que na ADPF 130/DF não ficou proibida decisão judicial para impedir a divulgação de matéria ofensiva à honra de alguém.

O julgamento do STF na ADPF 130/DF é relevante para a compreensão da extensão da liberdade de imprensa e da proibição de censura por duas razões. Primeiro, a própria Constituição atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o papel de seu maior guardião (art. 102, caput), de forma que lhe cabe dizer a última interpretação adequada ao conjunto de normas constitucionais. Em segundo lugar, a ADPF 130/DF é espécie de processo cujos efeitos atingem todas as pessoas (o chamado “efeito contra todos”, ou, em latim, “efeito erga omnes”).

Apesar da ressalva na reclamação 9.428/DF, outras decisões do STF sinalizam que o tribunal se inclina para adotar a interpretação de que o trabalho da imprensa não pode ser impedido nem mesmo por decisão judicial, pois isso seria uma forma de censura. Essa tendência se vê em decisões individuais de ministros do STF, que fortalecem a essência do voto do Min. Ayres Britto na ADPF 130/DF, como nestes casos:

a) decisão individual do Min. Ricardo Lewandowski na reclamação 16.074/SP, em 26 de julho de 2013;

b) decisão individual do Min. Celso de Mello na reclamação 15.243/RJ, em 11 de março de 2013.

Acerta o Supremo Tribunal Federal quando reafirma a prevalência da liberdade de imprensa sobre os direitos individuais. A liberdade de imprensa é absolutamente fundamental à existência da democracia. Sem a primeira, esta não existe. O direito do público a ter acesso às informações está acima dos direitos individuais. Isso deveria impedir que em qualquer situação o legislador e qualquer juiz, de qualquer instância, proibissem veículos de imprensa, inclusive pela internet, de exercer sua função jornalística.

Além das normas constitucionais citadas, deve-se considerar que o Brasil assinou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Essa convenção passou a valer no país com o ato de promulgação, por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992. Portanto, está em vigor no Brasil.

Seu artigo 13, seção 2, ao tratar da liberdade de pensamento e de expressão, determina o seguinte: “O exercício do direito previsto no inciso precedente [o direito à liberdade de pensamento e de expressão] não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.”

Dessa forma, na mesma linha da Constituição brasileira, a convenção proíbe qualquer forma de censura prévia e prevê que em caso de abuso na manifestação do pensamento, a responsabilidade seja ulterior, ou seja, posterior à divulgação.

Naturalmente, o exercício da liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento não é imune a regras e a consequências, em caso de abuso. O dano indevido à imagem, à vida privada, à intimidade e à honra podem gerar a responsabilidade de que o tenha causado. Essa responsabilidade, porém, deve sempre ser avaliada posteriormente à divulgação da informação, mas não deve permitir que juízes e legisladores impeçam o trabalho da imprensa, por meio de normas ou decisões que censurem a circulação da informação. Como disse o STF, na ADPF 130/DF, somente depois da divulgação é que se pode cobrar do causador do dano indevido o desrespeito a direitos constitucionais de pessoas atingidas pela notícia.

Essa responsabilidade posterior pode ser de caráter civil, por meio de indenização, ou penal, se ficar configurado crime contra a honra ou alguma outra maneira de descumprimento das leis criminais. Mesmo assim, no campo civil, o valor da indenização deve ser fixado de maneira proporcional, para não sufocar economicamente o veículo de imprensa.

Portanto, embora a matéria ainda não esteja claramente decidida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, as normas constitucionais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos parecem suficientes para determinar a proibição de qualquer forma de censura prévia, seja por meio de leis e outras normas, seja por decisões judiciais. Em caso de abuso, os autores da ofensa podem sofrer consequências de natureza civil (indenização) e penal (se ficar caracterizado alguma infração penal).

Decisões judiciais não devem impedir a liberdade de imprensa nem a manifestação do pensamento. Diante das garantias constitucionais desses direitos fundamentais, isso transformaria o Poder Judiciário em órgão de censura, o que a Constituição não admite.