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Esse homem não matou somente minha filha, matou uma família inteira. Depois que ele foi preso, o pai e um dos irmãos dele ficaram nos ameaçando. Tivemos que entrar com uma medida protetiva, mas, mesmo assim, vivemos assustados. A. tem pesadelos constantes e não consegue formar vínculos de confiança com outras pessoas.” P., mãe de uma vítima de feminicídio.

Vítimas e mais vítimas

Na antevéspera do Natal, 23 de dezembro de 2017, surgiu a notícia de mais uma provável vítima de feminicídio no Brasil. Remís Carla Costa, estudante de Pedagogia na UFPE, com 24 anos, foi morta pelo “namorado”, no Recife, que já confessou o assassinato. Mais uma vítima da cultura de violência, objetificação e desrespeito sistemático às mulheres. Não só o Natal de 2017, mas todos os futuros, para essa família, ficarão associados à violência que lhes levou a filha.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017, 4.606 mulheres foram assassinadas em 2016 no Brasil. A polícia só registrou como feminicídio 621 desses casos, o que corresponde a 13,5% do total. Subnotificação é a tônica.

Ainda que fossem somente esses 585 casos – e claramente não são –, isso significaria uma mulher morta a cada 15 horas apenas pela condição de ser mulher. Isso é o que caracteriza feminicídio e justifica sua inserção no Código Penal como circunstância qualificadora do homicídio, por causa da violência doméstica e familiar ou do menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

É necessário o feminicídio estar no Código Penal?

Há quem defenda “desnecessidade” da circunstância qualificadora do feminicídio e afirme que a morte violenta de mulheres seria apenas mais uma forma de homicídio.

A previsão dessa qualificadora decorre do reconhecimento, pelo Poder Legislativo, de que o feminicídio tem traços particulares que geram especial reprovação social e jurídica e que exigem punição mais severa do que os homicídios em geral.

Feminicídio não é um crime a mais, mas resulta da cultura generalizada de superioridade masculina, que causa em homens pretensões de controle e propriedade de mulheres, bem como desrespeito à identidade, à dignidade e às escolhas das mulheres e, por vezes, desprezo e até ódio pela própria condição feminina.

Devido à cultura sexista e patriarcal de muitos países, o feminicídio é um problema internacional, reconhecido por agências do sistema das Nações Unidas.

Por suas características, não se trata de um homicídio como os demais. Ele é cometido majoritariamente por parceiros e ex-parceiros. Costuma ocorrer em uma dinâmica de abusos e violências diversas contra a mulher, que se prolonga no tempo, com agressões físicas, sexuais e psicológicas, ameaças e intimidação. Na maior parte das vezes, ocorre em situações nas quais a mulher se encontra em algum grau de vulnerabilidade, seja econômica ou de outra ordem. Os danos emocionais que essas agressões causam são intensos e mais duradouros do que as lesões físicas e atingem não apenas a própria vítima, quando sobrevivente, mas também filhas, filhos e outras pessoas próximas.

Estudo da Universidade Federal do Ceará com cerca de 10 mil famílias constatou que 34% das vítimas de feminicídio deixam três ou mais filhos. Isso mostra os gravíssimos efeitos secundários dessa espécie de crime, que gera uma legião de órfãos, parte dos quais continua a residir com os agressores.

Levantamento da OMS e da Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres constatou que cerca de 38,6% das mortes de mulheres, em todo o mundo, são causadas por alguém de seu círculo íntimo, contra apenas 6,3% das mortes de homens. Esses números são inferiores à realidade, devido à subnotificação e à dificuldade de esclarecimento de crimes em países não desenvolvidos.

Por tudo isso, justifica-se a permanência da qualificadora, tanto quanto outras previstas há décadas nas leis penais, a exemplo do homicídio cometido mediante pagamento ou por emboscada.

Feminicidas não são doentes mentais

Não é correto tratar todos os autores de feminicídio como doentes mentais. Isso retira deles a consciência e o livre arbítrio. Não são necessariamente doentes ou pessoas com algum transtorno. Doenças e transtornos podem ocorrer, como com qualquer pessoa, seja ou não ou autor de infração penal.

Autores de feminicídio são assassinos. Matam para satisfazer desejos, sentimentos e interesses que preferem não reprimir.

Tachá-los indiscriminadamente de doentes, transtornados ou “perturbados” chega a ser desrespeito com os próprios assassinos, pois muitos não se veem assim e de fato não o são.

O desrespeito desse rótulo, claro, é ainda maior com as vítimas, porque atenua a responsabilidade dos assassinos.

Mudanças necessárias

É preciso mudar a cultura de os homens se acharem donos de namoradas, esposas e parceiras. É inaceitável que homens se achem no direito de assediar mulheres no transporte público, nas ruas, no ambiente de ensino ou de trabalho e até nas casas onde elas moram.

Mulheres são violentadas, em muitos sentidos, por homens que estão muito próximos delas, como pais, padrastos, namorados, parentes, colegas de trabalho e vizinhos. A escola e o trabalho, que deveriam ser ambiente seguro para todos, nem sempre o são para as mulheres. Nem a própria casa é.

É preciso debater o problema do feminicídio, das violências em geral contra mulheres e do machismo, em sentido amplo. É essencial dar a filhas e filhos educação que oriente para o respeito às diferenças e para posturas igualitárias, não machistas. É importante que os homens reconheçam essa realidade e discutam com amigos, colegas e conhecidos (e até com desconhecidos, em redes sociais, por exemplo) os problemas que o machismo cria para mulheres, para a sociedade e até para os próprios homens.

É necessário aumentar a eficiência do sistema jurídico de proteção da mulher. Em muitos casos, vítimas de feminicídio já haviam registrado ocorrência por agressões diversas, com base na Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006), mas falhas da polícia, do Ministério Público ou do Poder Judiciário não impediram atos mais graves, que muitas vezes chegaram à morte da mulher. Vítimas de agressão ainda são revitimizadas em delegacias e no Judiciário, por profissionais insensíveis e mal treinados, que não só põem em dúvida a palavra delas como por vezes desprezam a gravidade do quadro e as desrespeitam de maneiras variadas, como quando fazem gracinhas com a situação.

Basta de tantas mortes evitáveis e sem sentido, de tantas vidas, carreiras e potencialidades perdidas de forma selvagem, por motivação tão primitiva quanto intolerável.