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Reduzir a maioridade penal não resolverá problemas de segurança

O Brasil é país violento. Dos mais de 200 países no mundo, ocupa a 11.ª posição na classificação do índice relativo de homicídios, com 32,4 mortes para cada 100.000 habitantes, em 2012, época do último levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). O sistema de segurança pública tem muitas falhas: alta ineficiência na apuração de crimes, baseada em um modelo arcaico e burocrático de inquérito policial; morosidade de processos judiciais; corrupção e violência em diversos setores das polícias; sistema prisional negligenciado pelos governadores; altas taxas de reincidência etc.

Alarmados por essa situação inaceitável, é compreensível que muitos cidadãos acreditem no endurecimento de punições e em ainda mais encarceramento, como se isso fosse reduzir os índices de violência. Infelizmente, não funciona e ainda poderá piorar a situação de insegurança da sociedade brasileira.

Um dos mitos que circulam na sociedade é o de a redução da idade para aplicação de punição criminal (legalmente chamada de imputabilidade penal, prevista no artigo 27 do Código Penal), que alguns denominam como “maioridade penal”, ser importante para reduzir a violência. Não é, e provavelmente teria efeito contrário.

Adolescentes já são responsabilizados no Brasil

Muitas pessoas afirmam que adolescentes não sofrem consequência por atos ilegais que pratiquem, e isso os estimularia a cometer tais atos. Mas não é verdade. Em outro texto, Ato infracional, crime e indenização: responsabilidade de crianças e adolescentes por atos ilícitos, explico as diversas consequências que um adolescente pode sofrer se cometer ato infracional (que é a denominação legal do ato praticado por adolescente correspondente a crime).

No caso de atos infracionais graves, com violência a pessoa, o juiz da infância e da adolescência pode aplicar internamento a adolescente pelo prazo de até 3 anos. Se se considerar que um adulto condenado por crime pode ter progressão de regime de cumprimento de pena após cumprir 1/6 da pena (artigo 112 da Lei de Execução Penal) ou em 2/5 da pena, no caso de crime hediondo (artigo 2.º, parágrafo 2.º, da Lei dos Crimes Hediondos), verifica-se que esses 3 anos não são tempo assim tão curto para que um jovem fique privado da liberdade, mesmo comparado a adultos. [O símbolo “§” lê-se como “parágrafo”.]

Na verdade, ao contrário do que se divulga, adolescentes são passíveis de responsabilização por ato infracional no Brasil a partir dos 12 anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990). A diferença é que a consequência de seus atos não é a prisão dos maiores de 18 anos, mas cumprimento de medida socioeducativa, pois a finalidade da lei é mais recuperar esses jovens do que puni-los.

Levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) na legislação de 53 países (não incluindo o Brasil) mostrou que 79% deles adotam responsabilidade penal para adolescentes apenas a partir dos 18 anos, diferentemente do que se divulga. Assim como a maioria desses países, o Brasil possui sistema específico de justiça juvenil, de modo que o país não está isolado em aplicar medidas especiais a pessoas com menos de 18 anos. Na verdade, a aplicação de medidas socioeducativas a adolescentes com 12 anos põe o Brasil entre os países com idade mais precoce para aplicação delas.

A quantidade de adolescentes que cometem atos graves é baixa

De acordo com o levantamento mais amplo e confiável sobre o sistema de medidas socioeducativas aplicáveis a adolescentes, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010 e 2011, havia 17.502 adolescentes internos por cometer ato infracional. Esses são, em geral, aqueles que praticam atos infracionais mais graves, pois, como o sistema não tem vagas suficientes, os adolescentes que praticam atos infracionais leves são geralmente postos em liberdade assistida ou outra medida que não o internamento (exatamente como juízes criminais concedem liberdade a adultos que praticam crimes leves).

Em 2010, havia no Brasil 97.742.000 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos, isto é, 21,2% da população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O total de adolescentes internados correspondia, portanto, a 0,017% dessa faixa etária.

Isso significa que não vale a pena adotar medida drástica como a redução da idade mínima para imputabilidade penal se o percentual de adolescentes infratores é tão reduzido. É claro que há casos específicos de atos violentos praticados por adolescentes, mas uma mudança legislativa tão importante deve considerar a realidade global, não condutas individuais.

Adolescentes não cometem muitos atos violentos

Um dos argumentos para redução da idade de imputabilidade penal seria o fato de muitos adolescentes cometerem crimes violentos. Isso exigiria resposta mais rigorosa do poder público.

Problema grave na incompetência da gestão da segurança pública no Brasil é a crônica falta ou imprecisão das estatísticas. Qualquer gestor sabe que, sem diagnóstico, é difícil administrar bem qualquer problema. No caso da segurança, os maus diagnósticos estão associados à falta de estudos que mostrem o fenômeno da criminalidade.

Não há números precisos de atos infracionais violentos cometidos por adolescentes. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) estima que, no Brasil, esses crimes seriam apenas 1% do total. Mesmo que o percentual seja o dobro ou o triplo disso, ainda assim, do ponto de vista global, a quantidade de crimes violentos atribuíveis a adolescentes não justificaria adoção de decisão política tão drástica quanto a de pôr adolescentes em prisões, em lugar de mantê-los em unidades socioeducativas.

Adolescentes sabem o que fazem?

Argumenta-se que adolescentes votam no Brasil a partir dos 16 anos de idade, que têm muito mais acesso a informação do que no passado e que sabem o que é certo e errado. Por isso, deveriam ser responsabilizados criminalmente da mesma forma que adultos.

Não há dúvida de que, em geral, um adolescente de 16 anos sabe ser errado matar alguém ou cometer atos violentos como estupro ou roubo. A questão é complexa, de certa forma, pois há estudos segundo os quais a própria formação cerebral dos adolescentes está incompleta até depois dos 20 anos. Embora eles tenham noção do certo e do errado, a análise e a decisão deles próprios sobre seus atos não tem a mesma maturidade e profundidade dos adultos.

Mesmo admitindo que adolescentes tenham capacidade de se comportar com base em sua noção de certo e errado, isso não é motivo suficiente para decidir colocá-los em prisões. Toda medida de impacto na sociedade, como essa, deve levar em conta não apenas as condições individuais das pessoas atingidas, mas, principalmente, se, do ponto de vista global, ela será benéfica para o interesse social. Como se demonstrará aqui, é melhor para a sociedade manter adolescentes em unidades socioeducativas do que pô-los em prisões.

Adolescentes que cometem atos gravíssimos podem ficar mais de 3 anos internados

Como se expôs, os 3 anos de internamento que um adolescente pode experimentar pela prática de ato infracional grave correspondem a 1/6 de pena de 18 anos de reclusão, caso ele fosse adulto, o que não é pouco para a realidade das execuções penais no Brasil.

Muitas pessoas assustam-se e indignam-se, com razão, diante de certos atos muito violentos, praticados por adolescentes. Não é incomum que se trate de pessoas com psicopatias, algumas quais são, em princípio, incuráveis. Nesses casos, o adolescente pode permanecer internado para tratamento psiquiátrico por prazo superior, enquanto perdurar sua periculosidade.

Será inútil para a sociedade pôr adolescentes em prisões

Brasileiros veem semanalmente notícias sobre o caos do sistema prisional. Prisões superlotadas; instalações indignas; alimentação de má qualidade; atendimento médico, jurídico e religioso precário ou inexistente; violência entre presos e cometida por agentes penitenciários; má administração de unidades; ociosidade de presos; incompetência ou corrupção para entrada de telefones celulares, usados no cometimento de novos crimes; falta de capacitação de presos para trabalho honesto, ao final das penas. Esses são alguns dos graves problemas que afetam muitas das prisões brasileiras, embora não se deva generalizar, porque há unidades que funcionam adequadamente.

Não se trata aqui de defender regalias, benesses nem condescendência para pessoas condenadas por crimes graves. O problema é outro. Não se conhece nenhum país que trate presos mal como o Brasil que tenha tido sucesso em reduzir índices de criminalidade. Não é violentando presos que se conseguirá isso. Costuma-se dizer que violência gera violência. Parece intuitivo: pessoas que passam anos atrás das grades sofrendo diversas formas de violência tenderão a extravasá-la quando saírem de lá.

As penas de reclusão e detenção, chamadas na lei de penas privativas de liberdade, consistem em retirar o condenado, provisoriamente, do convívio social. Sua finalidade não é violentar e retirar a dignidade do preso. Tratá-lo com rigor, mas com respeito, parece muito mais eficiente na redução do crime do que as múltiplas violências cometidas nas prisões brasileiras.

Prova disso é que, embora o Brasil tenha a 4.ª maior população carcerária do planeta, com cerca de 570.000 pessoas presas, tem também altos índices de criminalidade.

Outro dado nessa direção é que mesmo a partir da entrada em vigor da Lei dos Crimes Hediondos, em 1990, com penas e medidas processuais mais severas para crimes de especial gravidade, houve, na verdade, aumento da criminalidade.

Encarcerar adolescentes, portanto, dificilmente reduziria a violência.

No sistema prisional brasileiro não há espaço para adolescentes

De acordo com o Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil, do Conselho Nacional de Justiça, o país tinha, em 2014, 567.655 pessoas presas, embora o sistema carcerário tivesse apenas 357.219 vagas. Isso significava déficit de 210.436 vagas. Além desses presos, havia 147.937 pessoas em prisão domiciliar, muitas precisamente pela falta de vagas no sistema. Se somarmos esse contingente, o país passaria a 358.373 vagas de déficit. Ainda existiam nada menos que 373.991 mandados de prisão não cumpridos no país. Portanto, o déficit no sistema prisional é de 732.364 vagas, no total.

A conclusão é simples: se o país precisaria construir mais do que o dobro de vagas em relação às atuais apenas para abrigar presos adultos, é impossível imaginar que haverá onde pôr contingente adicional de presos adolescentes, caso a idade de imputabilidade penal fosse reduzida para 16 anos. Simplesmente não há vagas.

Será pior para a sociedade pôr adolescentes nas prisões

Além de inútil, seria certamente pior para a sociedade pôr adolescentes em prisões do que mantê-los em unidades socioeducativas. A prisão, sobretudo no Brasil, dificilmente ressocializa alguém e, além disso, contribui para a geração de novos crimes, por uma série de razões. As taxas de reincidência do sistema criminal brasileiro não são exatas, mas se estima que girem em torno de 70%.

No sistema de medidas socioeducativas, aplicáveis a adolescentes, embora muitos estabelecimentos também tenham sérias deficiências, essas taxas são menores. Estudo sobre reincidência juvenil em Belo Horizonte (MG) no ano de 2009 apontou reincidência de até 33%. O levantamento mais amplo e confiável sobre o tema, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2010 e 2011, visitou 320 estabelecimentos de medidas socioeducativas, entrevistou 1.898 adolescentes internados e examinou 14.613 processos. Nele, apurou que o índice médio nacional de reincidência em atos infracionais era de 43,3%. Apesar de alto, ainda assim é bem inferior ao do sistema prisional de adultos.

A comparação dos índices de reincidência indica que colocar adolescentes no ambiente prisional aumentaria em mais de 50%, no mínimo, a taxa de reincidência deles em atos ilegais (ou seja, de 43,3% para cerca de 70%). Isso, evidentemente, não interessa à sociedade.

Há barreiras jurídicas à redução da maioridade penal

Não se pretende fazer aqui estudo jurídico profundo sobre a possibilidade de reduzir para 16 anos a idade de imputabilidade penal. Mesmo assim, existem entendimentos consistentes de que essa redução seria inconstitucional por diversas razões, como por violar direitos fundamentais de adolescentes e o artigo 227 da Constituição da República.

De acordo com o art. 227 da Constituição, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Certamente não será com redução da idade para responsabilização criminal e com inserção de adolescentes no indigno sistema prisional brasileiro que esse dever constitucional será cumprido.

O que fazer?

Em lugar de reivindicar aumento de pena de crimes e de reduzir a idade mínima da imputabilidade penal, seria muito mais útil para a sociedade exigir dos gestores públicos, principalmente de governadores e deputados estaduais, cumprimento integral do Estatuto da Criança e do Adolescente e adoção de política de educação fundamental e média de qualidade, entre diversas outras políticas públicas que poderiam reduzir a criminalidade em geral.

De acordo com a divisão de competências da Constituição de 1988, cabe principalmente a governadores a criação e manutenção de estabelecimentos prisionais e de medidas socioeducativas. Por falta de decisão política deles, esses sistemas são tão ruins e contribuem para piorar a situação de violência, em vez de reduzi-la. Cobrança a deputados estaduais pode servir para gerar pressão sobre o Poder Executivo estadual e contribuir para melhoria da situação. Além disso, prefeitos municipais devem ser cobrados para melhorar a rede de ensino público municipal.

Investir nos estabelecimentos de medidas socioeducativas, para que tenham instalações dignas, ensino e capacitação profissional e apoio psicológico a essas pessoas em formação, seria muito mais produtivo do que lançar adolescentes infratores nas fábricas de criminosos que atualmente são as prisões brasileiras. Um dos exemplos concretos disso é uma unidade de medida socioeducativa da cidade de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, a qual, com assistência adequada a adolescentes, tem índice de reincidência de apenas 13%.

Existe a noção relativamente disseminada de que internar adolescentes autores de atos muito graves e violentos por no máximo 3 anos seja medida suave de mais. De fato, em algumas situações, apesar de todos os argumentos acima, as normas do ECA podem não ser suficientes como consequência. Solução intermediária, em vez de reduzir para todos os adolescentes a idade de responsabilidade criminal, seria alterar a lei para permitir internamentos por prazos maiores (para 5, 8 ou até 10 anos, por exemplo), no caso de crimes de especial gravidade. Esses internamentos deveriam ocorrer em estabelecimentos (ou alas) destinados a adolescentes autores de atos graves, separados dos autores de atos infracionais sem gravidade e não em penitenciárias, para diminuir o risco de eles se aprofundarem na prática de atos ilícitos.

Se desejar aprofundar a matéria, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) elaborou longo estudo em que aponta outras razões para não reduzir a idade mínima de imputabilidade penal.