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Responsabilidade pelo processo criminal

No Brasil, a Constituição da República de 1988 atribuiu expressamente ao Ministério Público a titularidade da persecução penal, ou seja, encarregou-o de supervisionar a investigação de crimes e de oferecer acusação, quando houver elementos para isso. Cabe ao Ministério Público também acompanhar a execução da pena, no caso de condenação.

Por isso se diz que o Ministério Público, no processo penal, é o dominus litis (“dono da lide”, em latim), isto é, o titular do processo destinado ao esclarecimento da verdade sobre ato que pode ser crime e à aplicação de pena, quando couber.

A investigação de crimes compete, como regra, à polícia, por meio de inquérito policial, embora o Ministério Público (MP) também possa fazê-la diretamente, sem necessidade de inquérito. Além da polícia e do MP, diversos outros órgãos públicos investigam fatos que podem ter consequências no campo criminal. Em todos esses casos, a investigação é destinada ao Ministério Público, ao qual cabe decidir as medidas apropriadas a tomar. Para saber mais, veja: Providências do Ministério Público ao fim da investigação criminal.

Diferentes crimes e os ramos e graus do Judiciário

Como o Poder Judiciário brasileiro é dividido em diferentes ramos, cada um com sua competência, cabe a juízes ou tribunais distintos julgar a acusação do Ministério Público contra alguém pela possível prática de crime. Os ramos do Judiciário com competência criminal são a Justiça Estadual, a Justiça Federal, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar da União. A Justiça do Trabalho não tem competência para julgar crime, em hipótese alguma. Para saber mais, veja: Estrutura do Poder Judiciário no Brasil.

Por isso, a depender das circunstâncias, um crime pode ser de competência estadual, federal, eleitoral ou militar federal, o que é explicado no texto Diferença entre crimes eleitorais, militares, federais e estaduais.

A investigação e o processo de crimes praticados por cidadãos em geral são, em regra, acompanhados por um juiz de primeiro grau (primeira instância). O Judiciário brasileiro, além de ser dividido em ramos, é organizado também em graus (as chamadas instâncias). Existem quatro graus de jurisdição (instâncias) na Justiça brasileira, explicados no texto citado acima, sobre a estrutura do Judiciário.

Para algumas autoridades, a depender do cargo que ocupem, a Constituição brasileira determinou que a investigação e o processo criminal devem tramitar em instâncias específicas. Nesses casos, diz-se que a pessoa tem foro privilegiado ou, na expressão mais técnica, foro por prerrogativa de função. Isso é explicado no texto O que é foro privilegiado.

O foro especial somente se aplica enquanto o indivíduo ocupar o cargo. Se um deputado federal, por exemplo, cometer crime de lesões corporais, deverá ser julgado no Supremo Tribunal Federal. Se, porém, deixar o cargo antes de o processo terminar, este será enviado à primeira instância.

 

Início e fim da investigação criminal

No caso dos cidadãos em geral, a investigação criminal pode começar por uma das seguintes formas:

a) a própria polícia toma conhecimento da (possível) ocorrência de crime e ela própria começa a investigação, por meio de inquérito policial;

b) a vítima do crime ou outra pessoa faz registro da ocorrência em órgão da polícia (geralmente, uma delegacia de polícia), o que gera um boletim de ocorrência (conhecido pela sigla BO), destinado a iniciar um inquérito policial ou termo circunstanciado de ocorrência (TCO – no caso de crimes de pequeno potencial ofensivo, definidos no artigo 89 da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995);

c) o aparente autor do crime é preso em flagrante delito, isto é, quando acabou de cometer o crime, foi perseguido logo após o ato ou foi encontrado na posse de objetos que faziam presumir ser ele o autor do crime; nesses casos, a polícia elaborará auto de prisão em flagrante, que também deve dar nascimento a inquérito policial; se o delito for de pequeno potencial ofensivo, não haverá auto de prisão, mas TCO;

d) a polícia recebe requisição de instauração de inquérito, geralmente procedente do Ministério Público; requisição não é solicitação, mas ordem para fazer algo; isso significa que a polícia não pode deixar de atender à requisição do MP, salvo se ela for manifestamente (evidentemente) ilegal; às vezes, órgãos do Poder Judiciário enviam requisições à polícia para instaurar investigação, mas isso não deveria ocorrer, como se explica no texto O que o juiz deve fazer quando tiver notícia de crime;

e) o Ministério Público tem conhecimento de possível crime e resolve ele mesmo investigá-lo, diretamente, por meio de procedimento investigatório criminal (PIC).

Caso a investigação seja feita em inquérito policial, como ocorre na maioria dos casos, o Ministério Público deve ser periodicamente informado do andamento dela, geralmente a cada 30, 60 ou 90 dias. A polícia deve enviar-lhe os autos do inquérito, ou seja, a reunião das folhas impressas que contêm provas e atos praticados na investigação. Com o início do processo judicial eletrônico (conhecido como PJe), algumas investigações já são completamente ou quase completamente digitais, sem autos físicos (isto é, com documentos em papel).

Ao término da investigação, deve a polícia novamente enviar o inquérito ao Ministério Público, pois este é que deve decidir as medidas apropriadas (vide texto citado acima, sobre as providências do MP ao final da investigação). Cabe à polícia fazer relatório da investigação, no qual deve mencionar os principais atos que praticou e as provas mais importantes que colheu. No relatório, o delegado de polícia deve evitar tecer considerações jurídicas sobre o crime, pois essa não é sua função. Como o nome indica, o relatório da investigação serve apenas para narrar os principais fatos da investigação. Análise jurídica de possível crime é tarefa que a Constituição atribuiu ao Ministério Público, não à polícia, cuja função é extremamente relevante, mas não abrange essa análise.

Quando a polícia encontra indícios (uma espécie de prova) de que um investigado cometeu crime, costuma realizar ato chamado indiciamento. Embora a imprensa dê muito destaque aos casos em que a polícia realiza indiciamento de alguém, esse ato não tem nenhuma importância processual, pois é apenas registro administrativo que a polícia faz, sem consequência no processo. Para saber mais, veja: Indiciamento em inquérito: ato irrelevante.

O Judiciário e a investigação criminal

No Direito brasileiro, quando a Constituição atribuiu ao Ministério Público o papel de titular da persecução penal (artigo 129, inciso I), consagrou o chamado princípio acusatório. Este é importante garantia fundamental dos cidadãos e significa que a tarefa de investigar crimes (que cabe à polícia e ao MP) e de acusar cidadãos pela prática deles (que cabe ao MP) deve ser separada da tarefa de julgar (que cabe a juiz ou tribunal), para evitar que a imparcialidade do juiz seja afetada.

Por causa do princípio acusatório, como garantia do cidadão, o juiz deve envolver-se o mínimo possível na investigação, a qual compete à polícia e ao Ministério Público. O juiz deve supervisionar a investigação, para evitar que ilegalidades sejam cometidas contra o investigado (o que também é papel do MP), e deve decidir questões para as quais a lei exija decisão judicial.

Para a maioria dos atos de investigação, polícia e Ministério Público não precisam de autorização judicial. Chamar alguém a fim de prestar depoimento como testemunha, colher vestígios de possível crime, realizar perícia em objetos, elaborar retratos falados e reconstituições são exemplos de atos importantes da investigação que polícia ou Ministério Público podem realizar diretamente, sem necessidade de ordem judicial.

Existem atos de investigação criminal, porém, que dependem de autorização do juiz ou tribunal responsável por acompanhar a investigação. É o que se chama reserva de jurisdição. Exemplo comum são atos que envolvam alguma quebra de sigilo dependente de ordem judicial, como o sigilo bancário e o de comunicações. Também se condicionam a autorização do juiz diligências como interceptação telefônica e busca e apreensão.

Concluída a investigação, se o Ministério Público oferecer denúncia, caberá novamente ao juiz (ou tribunal) examinar se a acusação é apta a dar início ao processo criminal. Neste caso, haverá recebimento da denúncia, e a ação penal começará. Nela, o denunciado (agora na condição de réu), terá direito a ampla defesa, como garantia constitucional fundamental de todo cidadão.

Direito a contraditório durante investigação

Investigação criminal não é processo judicial. Tecnicamente, é considerada procedimento administrativo. Isso tem relevância pelas diferenças entre um e outro.

Processo judicial é a ação penal (o mesmo que ação criminal). Nesta é que, apresentada a acusação pelo Ministério Público, por meio de denúncia, o denunciado será chamado a defender-se e, ao final, o juiz ou tribunal competente decidirá se ele é culpado ou inocente (caso o processo não se encerre sem julgamento de mérito, o que pode acontecer em alguns casos).

Por não ser processo judicial, o investigado não tem direito amplo a contraditório. O princípio do contraditório é explicado em outro texto, mas, em resumo, significa que as partes do processo têm direito a ser comunicadas das decisões judiciais, a apresentar alegações e provas e a recorrer das decisões, desde que o façam nos termos da lei.

Como não se aplica o princípio do contraditório à fase de investigação criminal, não se pode dizer que o investigado tenha direito a se manifestar durante ela. O direito do cidadão ao contraditório poderá ser exercido integralmente durante a ação penal, se o Ministério Público oferecer acusação. Portanto, o órgão responsável pela investigação criminal não está obrigado a comunicar a investigação ao investigado, muito menos a chamá-lo para “defender-se”, precisamente porque nessa fase ainda não há acusação alguma.

Nada impede, porém, que, se tiver conhecimento da investigação, apresente seus argumentos ao responsável por ela (o delegado de polícia, no inquérito policial, ou o membro do Ministério Público, nas investigações feitas por este). O Supremo Tribunal Federal aprovou a súmula vinculante 14, para estabelecer que é direito do advogado do investigado ter acesso às provas documentadas na investigação criminal.

Investigação criminal em tribunais

Em linhas gerais, quando alguém tem foro privilegiado (foro por prerrogativa de função), a investigação criminal segue a mesma lógica daquela dos cidadãos julgados na primeira instância. Há, porém, diferenças. Isso se aplica às autoridades julgadas no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça e nos demais tribunais com competência criminal (tribunais de justiça, tribunais regionais federais, tribunais regionais eleitorais e Tribunal Superior Eleitoral, tribunais de justiça militar e Superior Tribunal Militar).

Os casos de julgamento em cada tribunal são definidos de forma expressa pela Constituição.

Cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar, nos crimes comuns, o(a) Presidente da República, o(a) Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o Procurador-Geral da República (artigo 102, inciso I, letra b). Nos crimes de responsabilidade, cabe-lhe julgar os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos tribunais superiores, os do Tribunal de Contas da União (TCU) e os chefes de missão diplomática de caráter permanente (artigo 102, inciso I, letra c).

Cabe ao Superior Tribunal de Justiça julgar, nos crimes comuns, governadores de Estado e do Distrito Federal e, nestes e nos crimes de responsabilidade, desembargadores de tribunais de justiça e juízes membros de outros tribunais, membros dos tribunais de contas e os do Ministério Público da União que atuem perante tribunais (artigo 105, inciso I, letra a).

A acusação do Ministério Público nesses tribunais também compete a autoridade específica. No caso do STF e do STJ, ela cabe ao Procurador‑Geral da República (PGR), que é o Chefe do Ministério Público da União. No STJ, o PGR geralmente a delega a um Subprocurador‑Geral da República (membro da classe final da carreira do Ministério Público Federal).

Nos tribunais de justiça (estaduais), a acusação geralmente é feita pelo Procurador‑Geral de Justiça (chefe do Ministério Público estadual). Nos tribunais regionais federais, ela cabe a procuradores regionais da República (membros da classe intermediária do Ministério Público Federal).

No caso do Supremo Tribunal Federal, outra característica da investigação criminal é que o STF entende caber‑lhe autorizar o próprio início da investigação, o qual deve ser requerido pelo Procurador‑Geral da República. Portanto, se o PGR entender existir necessidade de coletar provas para decidir quanto à acusação, deve requerer ao STF instauração de inquérito, a qual será determinada ao Departamento de Polícia Federal. O PGR também pode realizar diretamente investigação criminal, mediante procedimento investigatório criminal.

Nada impede que, ao ter conhecimento de possível crime, o PGR obtenha provas por outros meios legais e ofereça imediatamente denúncia ao STF. A este caberá julgar se a denúncia é apta, recebê-la, se for o caso, e dar início à ação penal contra o agora réu.

A ação penal que tramita diretamente em tribunal chama-se ação penal originária e é regulamentada pelos artigos 1.º a 12 da Lei 8.038, de 28 de maio de 1990. A ação penal na primeira instância rege-se principalmente pelo Código de Processo Penal.

Nas investigações de pessoas com foro privilegiado, portanto, a diferença essencial é que a supervisão da investigação é feita por um membro do tribunal competente (ministro, desembargador ou juiz), e algumas decisões podem ser tomadas coletivamente pelo plenário do tribunal ou por um de seus órgãos (turmas, câmaras, seções etc., conforme a organização da corte). No caso das investigações de pessoas sem foro especial, essa supervisão é feita pelo juiz de primeira instância, de forma individual, embora possa caber recurso de suas decisões ao tribunal a que ele se vincule.