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Conceito

A colaboração premiada, também conhecida como delação premiada, é mecanismo de investigação de crimes, espécie do gênero meio de prova. Por meio da colaboração premiada, alguém que tenha sido coautor ou partícipe de crimes fornece informações à polícia e ao Ministério Público, em troca de benefícios autorizados pela lei, negociados com esses órgãos e por meio de acordo escrito, com a participação de seu advogado e sujeitos a confirmação (homologação) por parte do juiz.

Base legal

A primeira lei que tratou da delação premiada no país foi a Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, que tratava de meios de investigação para crimes praticados por organização criminosa. A lei previa, no artigo 6.º, que a pena seria reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levasse ao esclarecimento de infrações penais e da autoria delas. Essa lei foi revogada pela Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, que passou a regulamentar de forma mais completa a investigação de organizações criminosas e as definiu para fins do Direito Penal.

Depois, a Lei 9.613, de 3 de março de 1998, que tratou do crime de lavagem de bens e de dinheiro, previu a possibilidade de isenção ou redução de pena e de aplicação de regime mais suave de cumprimento de pena para o réu que colaborasse com as investigações e permitisse esclarecer os crimes e localizar os bens e valores objeto da lavagem (artigo 1.º, § 5.º). [Obs.: O símbolo “§” lê-se como “parágrafo”.]

Antes da Lei 12.850/2013, a Lei 9.807, de 13 de julho de 1999, tratou da proteção da vítima de crime, da testemunha ameaçada e do réu colaborador. Seu art. 13 previa alguns dos mecanismos de que tratou depois, com mais detalhe, a Lei 12.850/2013.

A Lei 12.850/2013 refere-se à delação premiada como colaboração premiada (art. 3.º, inciso I), um dos meios para a investigação de organizações criminosas, ao lado da captação ambiental de sinais, sons e imagens, da ação controlada de investigação etc.

Crítica ética à delação

Algumas pessoas fazem crítica invocando argumentos éticos à colaboração premiada. Afirmam que essa forma de investigação estimula a traição e se baseia no egoísmo do criminoso que quer se beneficiar, delatando os comparsas.

Essa crítica é inconsistente. Em uma democracia, na defesa do interesse da sociedade, é mais apropriado obter informações de um criminoso arrependido do que manter a comunidade exposta ao crime pelo pudor de arranhar uma suposta ética de criminosos. Não interessa ao Direito se o depoimento de alguém foi dado com altruísmo, arrependimento genuíno, egoísmo ou vingança. Essa ordem de preocupações compete a psicólogos, religiosos e filósofos. Especulações sobre o que se passa na mente do delator serão quase sempre meros exercícios de adivinhação. Não se deve renunciar à prova de crimes graves por causa de especulações.

Em muitos crimes graves, apenas os próprios participantes serão capazes de fornecer elementos sólidos sobre como os fatos se passaram e qual foi o papel de cada participante. Por mais que as técnicas especiais de investigação tenham evoluído com o tempo, elas ainda são frequentemente incapazes de esclarecer esquemas criminosos complexos.

A adequação da colaboração premiada, porém, só existe no regime democrático, no qual existam mecanismos de controle judicial apropriados a evitar vinganças e perseguições inaceitáveis.

Valor como prova

A Lei 12.850/2013 estabelece de forma expressa que as informações procedentes da colaboração premiada não são suficientes, por si sós, para fundamentar a condenação de terceiros (art. 4.º, § 16). Essa cautela da lei se justifica pelo fato de que o delator poderia inventar informações falsas para incriminar terceiros em crimes diversos, reais ou fictícios, com a finalidade de obter vantagens.

Portanto, há sempre necessidade de prova adicional às informações do colaborador. É a chamada prova de corroboração (nos EUA conhecida como corroborative evidence). Isso não ocorre apenas com a colaboração premiada. A necessidade de confirmação por outros elementos aplica-se a outras espécies de prova, como a confissão de corréu.

A delação premiada não é espécie de prova testemunhal, porque não é dada por testemunha, isto é, por terceiro que teve conhecimento dos fatos, mas por alguém que participou do cometimento deles, geralmente um coautor ou partícipe. O delator assemelha-se à figura do informante, de acordo com o art. 208 do Código de Processo Penal, ou seja, pessoa que fornece informações ao juiz sem compromisso de dizer a verdade.

Vantagens para o delator

De acordo com a Lei 12.850/2013, o colaborador pode receber do juiz as seguintes vantagens:

a) perdão judicial de seus atos (o que significa que não receberá pena por eles);

b) redução da pena em até dois terços;

c) substituição da pena privativa de liberdade (isto é, reclusão ou detenção) por pena restritiva de direitos (como o pagamento de valores [que o Código Penal chama de prestação pecuniária] e a prestação de serviço à comunidade, entre outras).

Os benefícios acordados com o delator não atingem os demais réus. A lei visa a estimular cada réu individualmente a colaborar com os órgãos do sistema de justiça criminal. Não faria sentido um réu que não colaborou com a investigação receber benefícios decorrentes da colaboração de outro.

Na concessão desses benefícios, a lei determina que o juiz leve em consideração a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social dos atos criminosos e a eficácia da colaboração (art. 4.º, § 1.º).

O artigo 4.º, § 4.º, da lei autoriza o Ministério Público a não oferecer denúncia (ou seja, acusação formal) se o colaborador não for o líder da organização criminosa e se for o primeiro a prestar colaboração efetiva para esclarecimento dos fatos.

Além disso, o colaborador pode obter como benefícios: a) medidas de proteção, b) preservação de seu nome e dados de identificação, inclusive por parte da imprensa, c) comparecimento perante o juiz separadamente dos corréus e d) cumprimento de pena em estabelecimento penal diferente dos demais condenados (art. 5.º da Lei 12.850/2013).

A lei qualifica como crime revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem prévia autorização por escrito da parte dele. A pena é de reclusão, de um a três anos, mais multa (art. 18 da Lei 12.850/2013).

Sigilo

O acordo de colaboração deve permanecer em segredo pelo menos durante a fase de colheita das declarações do delator, a fim de preservar a utilidade das provas que ele vier a dar. A colaboração premiada geralmente ocorre na investigação de crimes graves, em que o sigilo das diligências é fundamental. Portanto, nessa fase, deve prevalecer o sigilo, a critério da polícia e do Ministério Público, embora sujeito a controle por parte do juiz.

Enquanto polícia e Ministério Público entenderem que o sigilo é necessário (sujeito a supervisão do juiz), nenhuma outra pessoa ou órgão tem direito de acesso às informações resultantes da colaboração. Se a colaboração premiada se destina ao esclarecimento de crimes e se a titularidade da persecução penal é do Ministério Público, não faz sentido que outros órgãos desejem ter acesso à informação sigilosa contrariamente ao entendimento do MP.

Enquanto as diligências precisarem ocorrer de modo sigiloso, nem o advogado do colaborador pode ter acesso ao processo (art. 7.º, § 2.º, da Lei 12.850/2013). O defensor do investigado ou do réu terá conhecimento dos autos ao final das diligências. Isso é o que se conhece como contraditório diferido, ou seja, o direito de o investigado ou réu conhecer as provas e se posicionar contra eles (princípio do contraditório) é adiado (diferido) para fase posterior.

Isso também ocorre com outras diligências em investigações criminais, para as quais o sigilo é essencial (como a busca e apreensão e a interceptação de comunicações, por exemplo).

Mesmo na fase em que o advogado pode ter acesso aos autos para exercer a defesa de seu cliente, isso precisa ser autorizado pelo juiz (art. 7.º, § 2.º, e art. 23).

De acordo com o art. 7.º da Lei 12.850/2013, o pedido de homologação do acordo deve ser levado ao Judiciário e distribuído em caráter sigiloso ao juiz competente, com informações resumidas. Após a distribuição, o Ministério Público levará informações completas ao juiz (art. 7.º, § 1.º).

Uma vez oferecida a denúncia, os denunciados têm direito de acesso às declarações, para que possam defender-se (art. 7.º, § 3.º).

Também é crime o descumprimento de determinação de sigilo das investigações relativas a ação controlada, com pena de um a quatro anos (art. 20 da lei).

Momento

A delação pode ocorrer durante inquérito policial, investigação do Ministério Público, ação penal ou até depois dela. Como a lógica da delação está em o colaborador obter certas vantagens em troca das informações que fornecerá, as consequências da delação variam de acordo com o momento em que seja celebrada com o MP e com os crimes pelos quais o delator poderia ser responsabilizado.

Se o acordo de delação for celebrado antes de haver ação penal e o Ministério Público se convencer de que, em virtude dele, não deverá processar o delator, a decisão final sobre isso é do próprio MP. Isso ocorre porque, no Brasil, como na maioria dos países ocidentais, é o MP o titular da persecução penal (em virtude do artigo 129, inciso I, da Constituição da República). Por isso, é dele a última palavra sobre a decisão de acusar alguém. Mesmo que o acordo de delação seja levado ao conhecimento de um juiz e este discorde da decisão de não processar o delator, a única providência que poderá tomar será aplicar o mecanismo do art. 28 do Código de Processo Penal e submeter o caso a órgão de revisão interna do próprio Ministério Público.

Se houver ação penal contra o delator, porém, a decisão final sobre a situação deste será do juiz, porque, uma vez processado, é do Poder Judiciário a decisão final sobre absolver ou condenar o delator e, neste caso, sobre a espécie de pena aplicável, sobre a quantidade de pena e sobre os benefícios aplicáveis à condenação (como o perdão judicial, a redução de pena, a suspensão condicional dela e o regime de execução da pena).

De acordo com o art. 4.º, § 5.º, da Lei 12.850/2013, o participante do crime pode realizar colaboração premiada mesmo depois da sentença que o houver condenado. Desde que ele traga elementos importantes para esclarecimento dos fatos e da participação de outras pessoas, o Ministério Público pode propor ao juiz que a pena seja reduzida pela metade ou que defira ao colaborador progressão do regime de cumprimento da pena.

Legitimidade para o acordo de colaboração

A competência legal para comprometer-se em nome do Estado no acordo de delação premiada é apenas do Ministério Público (MP), embora submetida a controle judicial. Isso decorre do fato de que, de acordo com a Constituição da República, a competência constitucional para promover (ou não) ação penal contra alguém. Essa competência está prevista no artigo 129, inciso I, da Constituição, segundo o qual é função institucional do Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

Por consequência, apenas quem pode apresentar ao Poder Judiciário acusação contra alguém e pedir a aplicação da pena é quem pode também pedir que a pena não seja aplicada ou que o seja em menor grau, devido ao acordo de colaboração premiada.

A polícia e outros órgãos de investigação (como as comissões parlamentares de inquérito [CPIs] e órgãos administrativos que apuram fatos possivelmente criminais, como a Receita, órgãos ambientais, tribunais de contas etc.) não têm autorização legal para fazer acordo de delação premiada pela mesma razão acima exposta. Se a polícia e esses órgãos não possuem a incumbência legal de promover a ação penal, não podem se comprometer com a concessão de vantagens ao colaborador.

A legitimidade exclusiva do Ministério Público para formalizar acordo de colaboração premiada decorre também do simples fato de que, se o acordo fosse assinado com o delator por outro órgão público e o MP não concordasse com ele, este poderia processar o delator sem levar em conta as vantagens a ele oferecidas. Além disso, como o Ministério Público é o autor da ação penal e como as provas reunidas pela polícia e outros órgãos de investigação são destinadas primeiramente ao MP, é ele que deve avaliar a utilidade das informações do delator e a relevância delas para o esclarecimento dos fatos.

Isso não significa que a polícia e esses órgãos não tenham importante papel a desempenhar no panorama da colaboração premiada. Ao contrário, em condições ideais, polícia e Ministério Público devem trabalhar em conjunto, a fim de reunir a maior quantidade possível de elementos de prova para o esclarecimento de crimes. A polícia pode ajudar a localizar possível colaborador, ajudar a convencê-lo a realizar a delação (por meio de provas de seu envolvimento com o delito) e, sobretudo, deve colaborar na descoberta de outras provas que confirmem e fortifiquem as informações fornecidas pelo delator. De diferentes maneiras, o mesmo se aplica a outros órgãos públicos que podem descobrir a prática de crimes. Todos devem agir de modo harmônico para a defesa da sociedade, em obediência às leis.

Por isso mesmo, a Lei 12.850/2013 prevê no art. 4.º, § 6.º, que a negociação da colaboração com o investigado e seu advogado pode ter a participação da polícia e do Ministério Público.

A Lei 12.850/2013 confirma esse entendimento, ao prever que a colaboração premiada será levada à análise do juiz “a requerimento das partes” (art. 4.º), e só o Ministério Público é parte no processo criminal, em contraposição ao acusado. O § 2.º desse artigo permite que a polícia proponha a aplicação dos benefícios da colaboração ao juiz, mas a proposta (que a lei chama de “representação”) precisa ser aprovada pelo Ministério Público.

Forma

O acordo de colaboração premiada deve ser feito por escrito, com participação da polícia e do Ministério Público, de um lado, e do delator e seu advogado, de outro, a fim de que possa ser examinado e homologado pelo juiz (art. 6.º da Lei 12.850/2013).

Deve o acordo conter:

a) o relato da colaboração e a previsão de seus resultados;

b) as condições da proposta;

c) a aceitação do colaborador e seu advogado;

d) a assinatura dos participantes do acordo;

e) a especificação das medidas de proteção do delator e de sua família, se for o caso.

Homologação judicial

Havendo processo judicial em andamento, o acordo de delação precisa ser avaliado e confirmado pelo juiz: é a homologação judicial. Isso é necessário porque é o juiz o competente para definir a situação do réu, como se explicou.

O art. 4.º, no § 7.º, no § 8.º e no § 11, estabelece a necessidade de homologação. Para isso, o juiz deve considerar a legalidade do acordo e a voluntariedade do colaborador. Se necessário, pode intimar o colaborador para ouvi-lo, na presença do advogado. Se considerar que o acordo não atende à lei, pode negar homologação ou ajustar os termos do acordo à lei.

Utilidade da delação

A delação somente deve render vantagens ao delator se as informações por ele fornecidas forem realmente úteis ao esclarecimento de fatos com alguma complexidade, à descoberta do papel dos coautores do crime e à recuperação dos bens atingidos por ele, se houver. Informações irrelevantes ou pouco relevantes, que a polícia e o MP já possuam, ou que poderiam ser obtidas de forma simples, não justificam que se deem vantagens ao interessado na delação.

Afinal, a finalidade da delação não é gerar benesses para autores de delitos, mas permitir a descoberta de crimes graves, em benefício da sociedade.

O Ministério Público e o Judiciário podem negar a aplicação dos benefícios da delação premiada, se as informações prestadas pelo delator não forem relevantes. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido (por exemplo, no habeas corpus 119.976/SP).

Participação de advogado

Como a colaboração premiada envolve a revelação de informações que podem prejudicar o colaborador e outras pessoas, a Lei 12.850/2013 exige que toda a negociação seja feita na presença do defensor do investigado (art. 4.º, § 14 e § 15).

Arrependimento do delator

Pode ocorrer de o delator arrepender-se da delação durante o processo e voltar atrás nas informações que tenha oferecido: é a denominada retratação. Isso não significa que elas se tornem automaticamente inúteis. Ocorre aí algo semelhante ao que se denomina de retratação da testemunha.

Nessa situação, caberá ao juiz examinar as informações dadas por aquele que se retratou e verificar se elas são consistentes com as demais provas do processo. Se forem e o juiz considerar que bastam para a condenação dos demais réus (chamados de corréus), a condenação será possível, até mesmo tomando como base (entre outras), as provas fornecidas pelo delator antes de ele se retratar. Esse raciocínio é aplicado há décadas pelo Judiciário no caso de réus que confessam crimes à polícia ou ao MP na fase de investigação (chamada de fase pré-processual) e depois se arrependem da confissão quando são interrogados pelo juiz durante a ação penal.

Seja como for, se houver arrependimento do delator, este não merecerá mais os benefícios previstos no acordo de colaboração, precisamente porque terá dificultado a condenação sua e a dos demais acusados. Por outro lado, o § 10 do art. 4.º da Lei 12.850/2013 prevê a possibilidade de o colaborador, assim como o Ministério Público, desistirem do acordo. Nesse caso, as provas que o colaborador tenha produzido contra si não podem ser usadas apenas para o prejudicar.