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Normas ultrapassadas e o princípio acusatório

Um dos problemas do processo penal no Brasil é que o país ainda possui leis ultrapassadas, como o próprio Código de Processo Penal (CPP), que é de 1941 (embora tenha sido alterado, ao longo do tempo, em diversos pontos, por muitas leis posteriores). Além disso, vários temas relevantes não foram até hoje definidos pelo Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal, como a possibilidade de o Ministério Público (MP) investigar crimes diretamente e coordenar de maneira mais efetiva o trabalho de investigação da polícia, como ocorre nos países mais avançados.

Entre os assuntos do processo penal ainda mal resolvidos no Brasil está o chamado princípio acusatório. De forma resumida, esse princípio significa que devem ser separadas as funções de investigar e acusar, de um lado, e a função de julgar, de outro. Por esse princípio, cabe ao Ministério Público, de forma coordenada com a polícia, realizar a investigação e depois apenas ao Ministério Público cabe a função de acusar alguém de crime.

Ao contrário do que alguns afirmam de modo equivocado, o princípio acusatório não impede o MP de realizar investigações. Investigar é tarefa diretamente ligada à própria função de acusar. Toda pessoa ou entidade capaz de promover ação judicial tem a possibilidade de reunir provas para esse fim, segundo as leis vigentes. Pela mesma razão, nada impede que o MP reúna ele próprio, de acordo com a lei, os elementos que julgar necessários para uma ação penal.

O juiz deve apenas julgar e evitar envolver-se ao máximo com a investigação e com a acusação, a fim de evitar que sua imparcialidade seja contaminada, mesmo de forma inconsciente. A imparcialidade do juiz é uma das principais garantias dos cidadãos, para evitar que, quando sejam julgados, a decisão do juiz ou tribunal seja influenciada pelo interesse da parte contrária.

No caso do processo penal, a experiência histórica mostra que envolver o juiz na investigação ou na acusação pode ser prejudicial à imparcialidade e, por consequência, ao julgamento justo do acusado. A possibilidade de que uma mesma pessoa acumule funções de investigar, acusar e julgar é conhecida como princípio inquisitório.

Persecução penal

No Brasil, o princípio acusatório fortaleceu-se com a Constituição da República de 1988. Ela ampliou as funções do Ministério Público e deixou mais claro seu papel de responsável pela condução da acusação criminal, o que é tecnicamente denominado de persecução penal. O artigo 129, inciso I, da Constituição estabelece que é função do Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. Veja aqui a diferença entre ação penal pública e privada.

A persecução penal abrange duas fases: uma anterior à ação penal (chamada fase pré-processual) e outra que é a da própria ação penal. A investigação de crimes costuma ocorrer na fase pré-processual, por meio do inquérito policial ou por investigação diretamente realizada pelo Ministério Público.

O Ministério Público e a investigação de crimes

Essa introdução foi para deixar claro que não é função do juiz interferir na investigação criminal, nem mesmo para determinar que a polícia a realize. Esse papel é do Ministério Público, pois, se o juiz tiver de examinar documentos para avaliar, mesmo de forma superficial, que ali há indícios de possível crime, já poderá influenciar sua imparcialidade. Não se afirma que isso ocorra automaticamente ou que todo juiz seja influenciado dessa forma. Talvez a maioria dos juízes tenha profissionalismo e discernimento suficientes para evitar influências indevidas em seus julgamentos. De todo modo, há o risco de essa interferência ocorrer de maneira inconsciente.

Por isso, é sempre preferível que, ao deparar com possíveis indícios de um crime, o juiz os envie ao MP, para que este os analise e decida o que fazer: requisitar à polícia a instauração de inquérito, investigar diretamente, promover o arquivamento daquela notícia, ajuizar imediantemente ação penal ou tomar outra providência.

O artigo 40 do Código de Processo Penal

Uma das exceções a essa regra é a norma do artigo 40 do Código de Processo Penal. De acordo com ele, quando, em autos ou papéis que precisar examinar, o juiz ou tribunal verificar a existência de crime de ação pública, deverá remeter ao Ministério Público a cópia e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Esse artigo é resquício do princípio inquisitório acima mencionado, pois atribui ao juiz ou tribunal a função de concluir, de maneira preliminar, que há indicios de crime em documentos capazes de gerar o oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público. Atualmente não há dúvida de que esse exame não cabe ao juiz, mas, unicamente, ao MP. A denúncia é a petição que inicia a ação penal pública, como explica o texto O que são denúncia, queixa, notícia-crime e ocorrência.

O máximo que o juiz deve fazer com base no art. 40 do CPP é enviar cópia dos documentos que tiver examinado ao Ministério Público. Este é que os analisará e decidirá qual providência será apropriada, dentre as acima apontadas (investigação, denúncia, arquivamento etc.). O juiz não pode determinar nenhuma delas ao Ministério Público, muito menos o oferecimento de denúncia.

O juiz está obrigado a comunicar crimes?

Muitas vezes advogados que atuam em um processo concluem que alguém cometeu crime e que há indícios disso no próprio processo. Nesses casos, apegam-se a interpretação literal do art. 40 do CPP e insistem em que o juiz envie cópia dos autos ao Ministério Público, como se isso tivesse algum efeito sobre a análise dos papéis.

O art. 40 do CPP não impõe que o juiz tome essa providência, a pedido de advogado. A norma desse artigo é uma forma de evitar que indícios de crimes surgidos em um processo fiquem sem providências, mas não obriga o juiz a concordar com o advogado que queira provocar o MP a tomar medidas processuais penais. Se um advogado entender que há indício de crime em um processo, ele próprio pode fazer cópia dos documentos que considere importantes e enviá-los diretamente ao Ministério Público. Não há nenhuma necessidade de que o juiz faça isso nem de que o advogado envie os documentos por meio do juiz.

Na verdade, qualquer pessoa pode comunicar um possível crime ao Ministério Público, para que seja investigado. O artigo 5.º, inciso XXXIV, alínea a, da Constituição da República, classifica como direito fundamental de todos a possibilidade de comunicar ao órgão público competente o possível cometimento de um ato ilegal. No caso de possível crime ou contravenção penal, esse órgão é o Ministério Público ou a polícia, neste caso por meio do registro de um boletim de ocorrência. Mais informações sobre isso estão no texto O que fazer se você for vítima de crime. Os juízes, que também são cidadãos, podem igualmente comunicar crimes à polícia ou ao MP, quando forem vítimas ou testemunharem o cometimento de delito.