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Introdução

A imprensa noticia frequentemente casos de pessoas que, no Brasil, são investigadas por suspeita de cometer de crimes, que são presas em flagrante pela aparente prática de crime ou que são até condenadas, em primeira, segunda, terceira ou quarta instâncias, e, mesmo assim, são logo postas em liberdade ou nem chegam a ser presas.

Em contraste com isso, brasileiros veem notícias de outros países nos quais pessoas em situação semelhante são imediatamente presas durante a investigação ou logo após a condenação, mesmo por um juiz ou júri de primeiro grau, e permanecem na prisão. Por que a diferença de tratamento?

A soltura de pessoas que respondem a processo por crimes diversos (alguns graves, como os de corrupção) e a falta de encarceramento de pessoas condenadas são dois dos componentes da realidade brasileira que afetam a credibilidade no sistema de justiça criminal, enfraquecem a noção de que as pessoas devem obediência às leis em geral e até funcionam como estímulo à prática de crimes, pois alimentam a percepção de que as leis têm baixa eficácia (possibilidade de produção de efeitos) no país.

Na verdade, não é correto afirmar que o sistema de justiça criminal brasileiro não mantém pessoas presas. De acordo com o Ministério da Justiça (MJ), havia 548.003 pessoas presas em estabelecimentos prisionais e em delegacias de polícia, em dezembro de 2012. Essa é a quarta maior população carcerária do mundo, segundo o International Centre for Prison Studies (ICPS). Ocorre que o sistema criminal brasileiro se caracteriza pela seletividade, ou seja, atinge principalmente pessoas jovens, pobres e de baixa escolaridade. De acordo com o último censo do sistema penitenciário realizado pelo MJ, para 2009 (total de 473.626 presos), 59% dos encarcerados tinham de 18 a 29 anos (238.104 pessoas) e 53,66% eram analfabetos ou possuíam instrução até o ensino fundamental incompleto (254.152 presos). Apenas 0,37% (1.775 presos) tinham ensino superior completo. Isso mostra que o sistema criminal brasileiro muito pouco prende pessoas com bom nível econômico e social, ainda que muitas vezes os crimes por eles praticados sejam muito mais danosos à sociedade do que os pequenos roubos, furtos e agressões geralmente praticados por indivíduos menos favorecidos economicamente.

De qualquer modo, as causas principais para que indivíduos não permaneçam presos são duas: a legislação processual penal brasileira e a interpretação que o Supremo Tribunal Federal dá à Constituição do Brasil e às leis penais. Ambas são, em muitos pontos, excessivamente benevolentes.

As espécies de prisão no Brasil

Existem, no Brasil, dois gêneros de prisão no Direito Processual Penal: as prisões processuais e a prisão por condenação.

As primeiras têm cabimento quando o cidadão ainda está sendo investigado por um crime ou foi condenado por decisão judicial ainda não definitiva, ou seja, por decisão da qual caiba recurso. As prisões dessa espécie são a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão temporária, a prisão para extradição e a prisão por condenação não definitiva (isto é, ainda pendente de recurso). Elas são explicadas com mais detalhe no texto Prisão em flagrante, preventiva, temporária, por condenação e outras espécies. Em todas elas existe a característica de que a pessoa presa ainda está sob investigação ou não foi definitivamente condenada.

A prisão por condenação ocorre quando o indivíduo foi condenado por decisão judicial definitiva, isto é, da qual não é mais possível recorrer. Nesse caso, a prisão destina-se à execução da pena imposta ao cidadão.

A interpretação do Supremo Tribunal Federal

No caso das prisões processuais (as quais, como dito, incluem a prisão por condenação não definitiva), o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que se aplica de forma muito ampla uma garantia constitucional de todo cidadão, prevista no artigo 5.º, inciso LVII: o princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade. De acordo com esse princípio, ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Trânsito em julgado é o momento em que a decisão judicial não pode mais ser objeto de recurso processual.

Com base nessa norma constitucional, o STF entende que alguém somente pode ficar preso antes da condenação definitiva se couber prisão preventiva (explicada no texto citado acima). Em resumo, a prisão preventiva deve ser decretada pelo juiz ou tribunal quando o investigado ou réu em processo criminal constituir ameaça à ordem pública ou econômica (devido à probabilidade de cometer outros crimes), risco à aplicação da lei penal (por exemplo, pela probabilidade de fugir), quando houver interesse da instrução criminal (ou seja, da condução do próprio processo penal – por exemplo, se o réu estiver ameaçando testemunha ou destruindo ou alterando provas). É preciso haver prova da existência do crime e indícios de que o réu seja o autor dele, conforme o artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP).

A tendência de o investigado ou réu aguardar em liberdade o andamento de investigações e processos começou com a chamada Lei Fleury (Lei 5.941, de 22 de novembro de 1973), aprovada durante a ditadura para modificar o Código de Processo Penal e beneficiar o delegado de polícia Sérgio Fernando Paranhos Fleury, a quem muitos atribuem a prática de tortura e que corria risco de ser preso.

Além dos requisitos da prisão preventiva previstos no artigo 312 do CPP, essa forma de prisão somente poderá ser determinada pelo juiz se não couber alguma das medidas cautelares alternativas relacionadas no art. 319 do mesmo código (como comparecimento periódico perante o juiz, proibição de frequentar determinados lugares etc.). Esta norma tornou ainda mais restrita a possibilidade de prisão de réus, pois a polícia ou o Ministério Público precisam demonstrar ao juiz que nenhuma dessas medidas cautelares é suficiente e que, portanto, a prisão preventiva é a única opção apropriada.

Desse modo, mesmo que alguém seja preso em flagrante ou por qualquer outra forma de prisão processual (inclusive por condenação sujeita a recurso), sempre deverá o juiz examinar se estão presentes os requisitos legais da prisão preventiva. Se não estiverem, a prisão deve ser revogada, e o indivíduo deverá ser posto em liberdade provisória.

Espanto e descrédito

Por isso, constantemente ocorrem situações que causam incompreensão entre os cidadãos, nas quais alguém é preso em flagrante, até por crimes graves, e aguarda a investigação criminal, ou mesmo o processo, em liberdade. Mais espanto ainda geram situações em que alguém é condenado, às vezes até em segunda, terceira ou quarta instância, e continua solto, porque ainda existe a possibilidade de recurso.

Em dois casos conhecidos – entre incontáveis outros – essa benevolência do sistema processual brasileiro ficou evidente. Um foi o do jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, réu confesso do homicídio, com dois tiros (um deles pelas costas), de sua ex-namorada Sandra Gomide, em 20 de agosto de 2000, na cidade de Ibiúna (SP). Ele não só admitiu o assassinato como foi condenado pelo tribunal do júri (órgão de primeira instância do Judiciário para julgar crimes dolosos contra a vida) e, depois, teve a condenação confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (segunda instância). Apesar de tudo isso, permaneceu em liberdade por muitos anos, até sua condenação transitar em julgado (não mais ser passível de recurso), mesmo sendo réu confesso, o que tornava ainda mais incompreensível a aplicação do princípio da presunção de inocência.

Outro caso muito comentado é o da ação penal 470/MG, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que ficou conhecida como processo do “Mensalão”. Nele, diversas autoridades, empresários e pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT) – inclusive o ex-Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu – foram acusadas de numerosos crimes, como peculato (desvio de dinheiro ou bem público), corrupção e lavagem de bens, entre outros. Por causa das regras previstas na Constituição do Brasil sobre competência para julgamento de autoridades, esse processo se iniciou e foi julgado diretamente no Plenário do STF, que é o órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro. Mesmo depois de condenados por essa corte, os réus puderam apresentar diferentes recursos (entenda-os nos textos Embargos infringentes e Embargos de declaração). Só depois de quatro rodadas de julgamento (o da ação penal, o de embargos de declaração, o de embargos infringentes e o de novos embargos de declaração), alguns réus foram presos e começaram o cumprimento das penas.

Se já não é simples explicar aos cidadãos em geral como um julgamento do órgão máximo do Poder Judiciário possa ser rediscutido pelo mesmo tribunal, tampouco é fácil entender como uma decisão da Suprema Corte de um país não produza efeitos de imediato e ainda precise depender da vontade do réu condenado de interpor recurso, para que o caso seja reexaminado.

Nos países mais avançados é diferente

O fato é que essa interpretação benevolente do Supremo Tribunal Federal não é comum em alguns dos países mais avançados do Ocidente, como Alemanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal. Neles, em geral, quando o cidadão é condenado, mesmo que por juiz de primeiro grau, a decisão já produz o efeito de o réu ser preso e começar a cumprir a pena. Mesmo que o acusado recorra, aguardará o julgamento do recurso na prisão.

É claro que existe a possibilidade de condenações serem revertidas no julgamento de recursos, mas a lei processual penal desses países parte da premissa de que interessa à sociedade o início rápido do cumprimento da condenação. Além disso, se um réu é condenado em processo válido, com direito a ampla defesa, e um juiz ou tribunal declara que ele é culpado, não faz sentido falar em presunção de inocência, ainda que a decisão esteja sujeita a recurso. Se houve condenação judicial, a presunção de inocência deveria cessar. Na prática judicial brasileira, é como se as decisões judiciais das instâncias inferiores não valessem nada até que sejam confirmadas por instâncias superiores.

Não por acaso, nesses outros países a lei, o sistema criminal e as decisões judiciais costumam ser bem mais respeitados do que no Brasil. A Procuradoria Regional da República da 3.ª Região, órgão de segunda instância do Ministério Público Federal, com sede em São Paulo (SP), realizou pesquisa sobre esse aspecto específico na legislação de alguns países, o qual pode ser visto aqui.

Além da exigência do STF de que todos os recursos possíveis sejam interpostos antes de que um réu condenado comece o cumprimento da pena, certos aspectos da legislação processual penal brasileira também favorecem que não sejam presas pessoas investigadas, processadas ou até condenadas por crime.

Crimes sem prisão

Primeiro, existem certos atos ilícitos descritos na legislação penal que não são punidos com pena privativa de liberdade (isto é, com prisão). A prisão não é a única forma de punir alguém por infração penal. O artigo 33 do Código Penal (CP) prevê a possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, como a prestação de serviços à comunidade (arts. 43 e seguintes do CP) e a pena de multa (arts. 49 e seguintes do CP).

Na verdade, existe intenso debate entre juristas, filósofos, sociólogos e outros especialistas sobre a necessidade, a conveniência e a eficácia da pena de prisão, por uma série de razões, como o potencial da prisão para gerar influências negativas nos condenados e os altos custos das unidades prisionais para a sociedade. Essa discussão, porém, embora seja muito importante e mereça atenção dos cidadãos, dos parlamentares e dos gestores públicos, não é objeto deste texto.

Além das infrações penais para as quais a lei não estabelece prisão como sanção (punição), existem outros mecanismos na legislação que permitem alternativas ao cárcere e até evitam que o Ministério Público proponha ação penal, em certos casos.

Crimes de menor potencial ofensivo

Um desses mecanismos legais é a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995). A Lei 9.099 aplica-se aos crimes com pena máxima igual ou inferior a dois anos, de acordo com seu artigo 61. Essas infrações são denominadas crimes de menor potencial ofensivo, pois a lei os considera de menor gravidade.

Essa lei permite que o cidadão autor de fato definido nas leis penais com pena que atenda ao requisito do artigo 61 não seja preso em flagrante. Nesses casos, o autor do fato deve ser levado à presença da polícia e, se concordar em comparecer perante o juiz quando for citado, não será lavrado auto de prisão em flagrante. Em vez disso, a polícia elaborará um termo circunstanciado de ocorrência (TCO), com o relato e informações sobre o crime, e a pessoa será liberada.

A polícia então enviará os documentos do fato ao Ministério Público, que poderá realizar transação penal e evitar o oferecimento de acusação formal, por meio de denúncia (sobre ela, veja o texto Denúncia, queixa, notícia-crime e ocorrência). Mesmo que o autor do fato não aceite a transação penal, o Ministério Público ainda poderá oferecer denúncia e propor suspensão condicional do processo, se o crime tiver pena igual ou menor do que um ano (artigo 89 da Lei 9.099), desde que o denunciado aceite as condições propostas. Tanto na transação penal quanto na suspensão condicional do processo, se as condições forem cumpridas, o caso estará encerrado, sem necessidade de julgamento da acusação e, por consequência, sem prisão.

Condenação sem prisão e os regimes de execução da pena

Mesmo para os crimes que não são de menor potencial ofensivo, o fato de alguém ser condenado em processo criminal não significa que vá para a prisão.

O Código Penal brasileiro (artigos 33 e seguintes) e a Lei de Execução Penal (LEP – Lei 7.210, de 11 de julho de 1984) estabelecem regimes de cumprimento das penas criminais. Eles são o regime aberto, o regime semiaberto e o regime fechado.

No caso do regime aberto, o réu condenado não fica preso, mas cumpre a pena em estabelecimento chamado casa de albergado. Também no regime semiaberto o condenado não fica preso, pois pode cumprir a pena em colônia agrícola ou industrial ou em estabelecimento semelhante. Apenas no regime fechado, portanto, o réu de fato começa preso o cumprimento da pena.

Ocorre que, segundo o artigo 33, § 2.º [o símbolo “§” lê-se “parágrafo”], do Código Penal, apenas a condenações superiores a oito anos se aplica o regime fechado de cumprimento inicial da pena. Se o réu for condenado a até quatro anos de pena e não for reincidente, poderá começar o cumprimento dela em regime aberto. Se a condenação for superior a quatro anos e chegar a até oito anos, a pena começará a ser cumprida no regime semiaberto.

Além do tempo da pena, o juiz deverá também levar em conta, para determinar o regime de cumprimento, as circunstâncias apontadas no artigo 59 do Código Penal em relação ao réu: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e consequências do crime e comportamento da vítima.

Isso significa que, se essas circunstâncias do artigo 59 forem favoráveis ao réu e sua pena não for superior a oito anos, ele poderá não permanecer preso.

Mesmo se o juiz aplicar o regime fechado ao condenado, ele poderá, depois de algum tempo, conseguir o que a lei chama de progressão de regime, isto é, passar do regime fechado para o semiaberto e deste para o aberto. Para isso, ele deverá cumprir pelo menos um sexto da pena e possuir bom comportamento carcerário de acordo com o artigo 112 da citada Lei de Execução Penal (LEP – Lei 7.210/1984). Apenas no caso de crimes hediondos, o condenado precisará ter cumprido dois quintos da pena para pedir ao juiz o direito à progressão, desde que não seja reincidente. Se for, precisará cumprir três quintos dela – tudo de acordo com o artigo 2.º, § 2.º, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 25 de julho de 1990).

A Lei 8.072 possuía dispositivo (o artigo 2.º, § 1.º) segundo o qual a pena aplicada pela prática de crime hediondo deveria seria inteiramente cumprida no regime fechado. O Supremo Tribunal Federal inicialmente e por mais de vinte anos considerou válida essa regra, mas mudou de entendimento ao julgar o habeas corpus 111.840/ES, em 27 de junho de 2012, sendo relator o Ministro Dias Toffoli. Nesse processo, o STF declarou inconstitucional o artigo 2.º, § 1.º, da Lei 8.072 e passou a permitir que mesmo réus condenados por crimes hediondos tivessem progressão do regime de cumprimento da pena, se preencherem os requisitos legais.

Além da progressão de regime, o condenado pode ser solto antes do prazo da pena que lhe foi aplicada, por meio do livramento condicional(artigos 710 a 733 do Código de Processo Penal). Ele pode ser concedido quando o réu houver cumprido mais de metade da pena (ou mais de três quartos, se for reincidente), se não demonstrar periculosidade, se tiver bom comportamento na prisão, se demonstrar aptidão para o trabalho e se houver reparado o dano decorrente do crime (salvo se não puder repará-lo).

Investigação, morosidade, prescrição e impunidade

Outra das principais causas pelas quais autores de crime no Brasil não vão à prisão é o conjunto de sérias deficiências do sistema criminal. Elas começam com as enormes falhas dos órgãos de investigação criminal, sobretudo da polícia.

Cenas de crime não são preservadas para exame pericial; há falta de policiais para chegar rapidamente ao local do crime e colher provas nos momentos cruciais; há falta de materiais para o trabalho da perícia; policiais não recebem capacitação para o uso de técnicas modernas de investigação; há falta de pessoal e desestímulo de policiais para fazer face aos milhares de inquéritos; muitos policiais são mal remunerados e mal capacitados; delegados perdem tempo com investigações burocráticas e imitam o trabalho do Ministério Público e dos juízes, em lugar de dedicar-se à coleta de provas; a legislação não deixa clara a necessária preponderância do Ministério Público na condução da investigação criminal (como ocorre nos países mais avançados), entre outros problemas.

Obviamente, não se podem generalizar essas críticas. Há milhares de policiais, em todas as funções, dedicados e competentes, que realizam trabalho de grande qualidade, com muita dedicação, apesar dos riscos inerentes à sua importante profissão. Além do mais, não é correto nem justo atribuir à polícia todos os problemas do sistema criminal brasileiro. Outros atores desse sistema também têm sua parcela de responsabilidade, como o Ministério Público, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

Os índices de esclarecimento de crimes no Brasil são baixíssimos. Para que se tenha ideia da dificuldade de investigação de crimes no Brasil, considerando apenas os inquéritos policiais por crime de homicídio (um dos mais graves que há), a estimativa atual é de que apenas de 5% a 8% das mortes sejam esclarecidas pela polícia no Brasil. Esse percentual é de 90% no Reino Unido, 80% na França e 65% nos Estados Unidos, de acordo com o Diagnóstico da investigação de homicídios no Brasil (versão 2012, p. 22), da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp).

No Ministério Público também há necessidade de maior capacitação, inclusive para investigações centradas no ataque econômico ao patrimônio dos criminosos, desenvolvimento de ferramentas de acompanhamento e análise do trabalho dos membros e maior cobrança de resultados.

No Poder Judiciário, o problema mais grave na esfera criminal é a morosidade, isto é, a lentidão no andamento dos processos. Isso não é causado porque juízes sejam irresponsáveis, embora existam juízes às vezes pouco dedicados ao trabalho. Muitas vezes há falta de pessoal e de material para que os juízes possam julgar em tempo apropriado as causas sob sua responsabilidade. Muitas varas têm excesso de trabalho.

Contribui ainda para a demora no julgamento dos processos o fato de que a estrutura judicial brasileira é complexa, com quatro graus de jurisdição, ou seja, quatro níveis pelos quais um processo pode passar, em virtude de sucessivos recursos (veja o texto Estrutura do Poder Judiciário no Brasil). A lei e a jurisprudência (a interpretação que os tribunais dão às normas) ainda são excessivamente tolerantes em relação às possibilidades de recurso. Um único processo judicial pode gerar dez, vinte ou mais recursos, o que retarda sua conclusão, e os juízes e tribunais são excessivamente tolerantes com manobras dos advogados de defesa, sempre em nome de proteger o direito à ampla defesa. Vladimir Aras tratou do tema em tom jocoso neste texto.

Junte-se a tudo isso uma legislação também frouxa ao tratar da prescrição. Simplificadamente, prescrição é a perda de um direito devido à passagem do tempo. No Direito Penal, se a polícia, o Ministério Público ou o Judiciário demorarem de mais para tomar providências diante de um delito (investigar, processar, julgar e executar a pena), o crime pode não ser mais passível de punição, por causa da prescrição. Ela causa a extinção da punibilidade.

O sistema de prescrição penal no Brasil é complexo, e explicá-lo escapa à finalidade deste texto. Mas se pode dizer que as normas sobre prescrição são menos severas do que em países mais avançados, como EUA e França, e estimulam os advogados a criar incidentes no processo com a finalidade de fazê‑lo demorar, pois sabem que isso poderá gerar a prescrição dos crimes de seus clientes. Em outras palavras, nosso sistema estimula manobras dos advogados para atrasar o processo (a chamada procrastinação).

Por causa disso, muitos crimes não são jamais apurados, ou o Ministério Público consegue iniciar um processo criminal contra os responsáveis, mas o processo demora demasiado e pode gerar a impunidade do delito, mesmo depois de o réu ser condenado.

A tragédia penitenciária e a resistência de juízes

Além de todos esses fatores, frequentemente ocorre resistência em juízes no momento de decretar a prisão ou manter a prisão de alguém, devido ao conhecimento que têm das péssimas e indignas condições do sistema prisional brasileiro, por falta de atenção dos governadores dos Estados. Igualmente ocorre de presos que teriam direito à progressão do regime de cumprimento da pena não poderem ter esse direito reconhecido, devido à falta de estabelecimentos adequados, o que leva juízes e tribunais a lhes concederem situação mais benéfica, pelo fato de o poder público não ter condições de aplicar corretamente a lei. Acontecem ainda casos de juízes que determinam a soltura de presos, devido à superlotação de cadeias e outras unidades prisionais.

No habeas corpus 181.048/SP, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça determinou que um preso condenado ao regime semiaberto cumprisse a pena em regime aberto, pelo fato de não haver estabelecimento apropriado para o semiaberto. Esse é apenas um entre muitos exemplos.

Devido à histórica deficiência dos gestores públicos na administração do sistema prisional, esse mesmo sistema, de maneira contraditória, serve como motivo para evitar a prisão de pessoas que deveriam responder presas por seus atos.

Depois de tudo, o indulto

Como se vê, chegar ao término de um processo penal contra pessoas de condições econômicas favoráveis, capazes de contratar bons advogados, é verdadeira maratona. Se o Judiciário aplicar pena definitiva (não mais passível de recurso) e não ocorrer prescrição, ainda haverá mais uma possibilidade de o réu não cumprir a condenação de forma integral: o indulto.

De acordo com o artigo 107, inciso II, do Código Penal, o indulto é uma das formas de extinção da punibilidade do acusado, que equivale ao perdão da pena. Conceder indulto é competência do Poder Executivo federal, ou seja, do(a) Presidente da República (artigo 84, inciso XII, da Constituição da República), que pode estabelecer condições para isso.

No Brasil, em geral o indulto é concedido por meio de um decreto presidencial, no final do ano, próximo do Natal. Por isso é também conhecido como indulto de Natal, embora não exista relação necessária entre um e outro.

Uma vez concedido o indulto, cabe ao juiz responsável por supervisionar a execução da pena examinar se o condenado preenche as condições. O Ministério Público deve ser sempre intimado para analisar o processo.

O indulto não deve ser confundido com um benefício da execução da pena, chamado pela lei de saída temporária. Neste não ocorre extinção da pena.

Muitos juízes e membros do Ministério Público consideram que as regras de indulto têm sido cada vez mais frouxas e que extinguem a pena de número excessivo de réus. O decreto de indulto de 2013, por exemplo (o Decreto 8.172, de 24 de dezembro de 2013), extinguiu todas as penas de até oito anos de reclusão, mesmo para crimes praticados com violência, desde que o réu houvesse cumprido um terço da pena (dois anos e oito meses, para pena de oito anos) e não fosse reincidente. O decreto contém uma série de outros casos nos quais a pena é extinta, depois de todas as dificuldades de um processo penal.

Veja-se a contradição. Por exemplo, um assaltante foi condenado por crime de roubo, no qual agrediu a vítima, à pena de seis anos de reclusão. Se não fosse reincidente, bastaria cumprir dois anos e seria beneficiado com o indulto de 2013. Se fosse reincidente, bastaria cumprir três anos (metade da pena).

A vastidão de casos aos quais o indulto é concedido reforça a noção de que o sistema de justiça criminal brasileiro não é sério.

Conclusões

Sem pretender esgotar todos os aspectos relevantes do problema neste texto, parece correto concluir, de forma resumida, o seguinte:

a) a lei e a jurisprudência brasileiras adotam diversas posições excessivamente benevolentes para com pessoas investigadas ou processadas pela prática de crime, em contradição com práticas mais severas adotadas em países mais avançados e com a expectativa de grande parte da população;

b) o sistema jurídico criminal brasileiro é altamente seletivo e ineficiente, sobretudo para réus com poder político e econômico; a grande população carcerária é constituída na enorme maioria por indivíduos jovens, com pouca instrução e poucos recursos econômicos;

c) as condições das prisões brasileiras são profundamente indignas em muitos estabelecimentos, desrespeitam os direitos de qualquer ser humano e contribuem elas próprias para a ineficiência do sistema criminal e para a reincidência dos cidadãos condenados.